Ana Aymoré 29/07/2019O sonho de ZhuangziGanhador do prêmio Oceanos em 2017, Karen é um livro que divide opiniões. Já li alguns comentários bastante desfavoráveis a ele que, a princípio, me desanimaram, até que uma resenha do @literatoni recolocou-o na minha mira.
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Logo de cara, sua fábula alude a elementos da literatura do século XIX: uma mulher desperta, após um suposto acidente numa queda-d'água, numa cama que não é a sua, com um marido que não reconhece, numa decadente mansão no interior da Inglaterra. Chamada de Karen por Alan, um escritor diletante, e pela governanta com quem estabelece um tortuoso diálogo em busca da verdade, a mulher não consegue se recordar de nada de sua vida nesse contexto, mas se lembra com alguma certeza de uma vida mais autônoma como pintora em Londres. No desenrolar da trama, esse esboço inicial associa o motivo fundamental do romance vitoriano da "louca do sótão", que faz da mulher uma prisioneira da tirania patriarcal, retratado de forma funesta na literatura (como em Jane Eyre ou O papel de parede amarelo) a traços constantes nos contos de fadas (a passagem para uma realidade alternativa através de alguma espécie de portal de ligação, nesse caso a cachoeira), ao cenário gótico, num espaço ancestral e eternamente mergulhado em frio e névoa, e a elementos estruturantes do fantástico, como aquilo que Remo Ceserani chama de objeto mediador, algo que atestaria a existência do "real" (em Karen, uma pedra alaranjada).
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Mas o melhor do livro, para mim, não está nessa rede de paródias, mas na composição de tom jamesiano que a autora desenvolve com maestria. Ele contém exatamente aquilo que a narradora identifica nos contos do enigmático Alan, a "indecisão perturbadora" dos contos de Henry James, sobretudo a questão da identidade como algo fixo. Todas as histórias são duas, diz a narradora: a luta entre o anjo bom e o anjo caído, e a mulher que se apaixona por um homem assombrado por outra mulher. Ou três, se adicionarmos o sonho de Zhuangzi, o mestre taoísta, de ser uma borboleta e não saber mais, ao despertar, se era Zhuangzi que sonhara ser uma borboleta ou uma borboleta que sonha ser Zhuangzi.