Maria Ferreira / @impressoesdemaria 06/06/2018Memórias e LinguagemEste é um livro de memórias, no qual a autora vai em busca de tentar reconstruir a história de sua família, Neves e Villas Novas, desde Portugal até Minas Gerais, onde viveu sua infância no Sítio de Cima, às margens de um riacho que corria para o Rio Doce. Para tal, constrói uma narrativa na qual expõe a ajuda que teve de familiares como também as dificuldades dessa empreitada, uma vez que envolve a vida de outras pessoas e nem todas estão dispostas a colaborar ou aceitam bem essa ideia.
É um livro fortemente baseado na realidade, mas é bom ter em mente que não deixa de ser uma narrativa ficcionalizada. Por isso é importante saber diferenciar as instâncias autor, narrador e personagem, por mais que a narrativa faça parecer que é a própria autora quem nos fala, é bom lembrar que o faz por meio de uma narradora, que é também personagem. Em diversos momentos, a narradora frisa que o trabalho de um escritor é retrabalhar a realidade, contar mentiras fazendo parecer que são verdades: “Vou contando a saga da família. Tudo é ficcional, nada é oficial” (p.36); “(...) Eles são inocentes não sabem que nós, escritores, somos mentirosos. Vamos intercalando verdades e mentiras para confundir o leitor. A verdade é o que menos nos interessa” (p.115)
A narrativa não linearizada, ora em primeira ora em terceira pessoa permite não só que vários assuntos sejam abordados, como também que haja um trânsito entre o passado e o presente, desde alguns aspectos da escravidão, que são não desenvolvidos até a tragédia de Mariana, com o rompimento de duas barragens da empresa Samarco, em 2015 e teve como uma das consequências a morte do Rio Doce, que foi e é muito importante para a autora. O presente se faz perceptível nas diversas críticas sociais e políticas: “O Brasil está em chamas. Gritam o preço da cebola, do alho e do tomate. Se não tem pão, pois que comam brioches. Esta é a resposta de uma rainha, não importa se a cabeça dela irá rolar depois. Alguém está querendo falar de depois? Depois é outro dia. Eles dizem que puxam uma pena, vem uma galinha. Durante as passeatas, nenhum político é bobo o suficiente para aparecer lá segurando bandeirinhas” (p.43).
Paralelo à ação principal de busca da origem familiar, o livro também vai se valer da metalinguagem para tratar sobre o ato de escrever, afinal é um livro sobre o processo de pesquisa e escrita de um livro sobre uma história familiar. Por isso, em muitos momentos há passagens que são sobre o ato da escrita: “Se a escrita estiver muito bem comportada, desconfie. Sujeito, verbo e complemento. ‘Suje-a”. Faça inversões. Mas o texto não pode ficar incompreensível. Lance mãos das imagens: iterativas e recorrentes. Use enumerações caóticas. Se a verdade atrapalha, retira. Nosso compromisso é com a literaridade. Seleção vocabular não deve ser esquecida” (p.68).
A impressão que tive é que a autora se vale desse recurso da metalinguagem também para que o leitor entenda como o livro está pensado. Entenda que a linguagem singular tem um propósito. O mesmo pode ser observado no trecho a seguir: “Jorge Luís Borges dizia mais ou menos assim: Deus, com sua imensa ironia, deu-me os livros e a noite. Referindo-se à cegueira. Parafraseando-o, digo: Deus deu-me a escrita e a dislexia. As palavras migram, as letras mudam de lugar. Posso cometer mais de dois erros na mesma palavra. Algumas palavras comuns não estão registradas na biblioteca do meu cérebro. Ou as minhas ferramentas usam portas erradas na hora de buscá-las” (p.97).
Mas também o ato de escrever é por vezes descrito como algo que causa a catarse, como demostra esta frase que é repetida diversas vezes ao longo da narrativa: “Existe um momento em que, se eu não escrevesse, a vida seria insuportável” (p.77).
Sei que não é o foco do livro, mas quero destacar a questão da escravidão. Tem uma personagem, a Sinhá Ritinha, que foi uma das bisavós da narradora. Já pela ascendência portuguesa e a ancoragem em Minas Gerais, que utilizou muitos escravos nas minas, imaginei que está família teria alguma ligação com a escravidão, afinal é uma família branca. De fato, tem uma personagem chamada Sinhá Ritinha. O “sinhá” não deixa pensar outra coisa, mas há passagens mais evidentes sobre a relação da família com a escravidão: “Sinhá Ritinha não suportava mais beber água em canecos, como os escravos” (p.123); “Vovó nasceu em 1889, um ano após a abolição dos escravos. Ela dizia que se envergonhava com a escravidão. Era uma dolorosa mancha em nossa família. Contam que Sinhá Ritinha ficou chorando na boca do fogão, com uma caixa de fósforo. Não sabia acender o fogo, para coar o café da manhã. Muitos escravos seguiram adiante, mas a maioria voltou. Ir para onde? Fazer o quê? Não podiam morrer de fome” (p.190).
O grande diferencial do livro é que a linguagem é usada de modo a constituir a singularidade da obra. Um dos recursos utilizados para tal são os modos como os diálogos são expostos, sempre em discurso indireto. Dessa forma, por meio de metáforas e muitas referências literárias, a autora/narradora nos guia por essas águas turvas até que encontremos a transparência ou até que cheguemos perto de entender o que é ser lapidado em gemas raras.
Com introdução de Ivan C. Proença, capítulos antecedidos de epígrafes com haicais de Matsuo Basho e outros poetas, folhas grossas e ótima diagramação, esta publicação da editora 7 Letras só apresenta bons motivos para ser lida.
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