Aurora

Aurora Arthur Schnitzler




Resenhas - Aurora


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Ygor Gouvêa 10/06/2020

Mais uma grande novela de Schnitzler. Todo o caráter psicológico de seu personagem, todo seu complexo de inferioridade é não só expresso em seus pensamentos, em suas fugas, mas principalmente em seus gestos e posturas, mesmo os menores e aparentemente "insignificantes". Através de uma grande preocupação com sua imagem, de uma luta que toma grandes proporções ao tentar ilusoriamente se afirmar como individuo, condena irremediavelmente seus dias. Esse ser que se refugia entre as massas (militar) está imerso nos valores sociais de sua época e seu derradeiro fim, para além de ilustrar as mazelas internas de um homem, revela a hipocrisia moral de sua sociedade.
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jota 22/10/2017

O jogo, ou a vida...
A capa deste livro, com a reprodução de uma pintura de Cézanne, Os Jogadores de Cartas, foi a única coisa que não apreciei na edição da Boitempo, que pode lembrar algo da França, mas não a Viena em que Arthur Schnitzler (1862-1931) situa a história do jovem tenente Willi Kasda, inveterado apreciador do carteado. Com tradução, prefácio e notas de Marcelo Backes e no final uma cronologia resumida sobre o autor, a obra tem tudo para agradar leitores que apreciam novelas, gênero no qual Schnitzler foi mestre.

Aurora, considerada sua obra-prima, não é aqui um nome de mulher, mas aquela hora nebulosa, intermediária entre a madrugada e o novo dia que raia. Muita coisa acontece durante a aurora numa grande cidade como Viena. Enquanto trabalhadores estão acordando para uma nova jornada, algumas pessoas estão voltando para casa após uma noite inteira passada em volta de uma mesa de jogo. Ou pior, ainda se encontram numa delas.

A novela de Schnitzler inicia e termina quase como uma peça teatral (aliás, ele escreveu várias). No meio, o drama do jogador compulsivo que quer (ou precisa) ganhar muito dinheiro e que transita num terreno onde se cruzam a neurose, a sexualidade e a morte. Willi acredita que sendo infeliz no amor conforme se julga, pode ser feliz no jogo. No princípio parece que sim, ele ganha uma pequena fortuna para seu padrão de vida. Mas de volta ao café onde seus parceiros de jogo se reúnem tudo tende a mudar.

Ele ganha mais um pouco, perde, ganha novamente, perde novamente, numa ciranda infinita que só termina, em plena aurora, quando o vencedor anuncia o fim da jogatina e aí o tenente vê a que ficaram reduzidas suas economias. A nada, e ainda está bastante endividado. Deve bastante dinheiro para o jogador que lhe emprestou muitos florins para que continuasse jogando, um cônsul. Willi tem um pequeno espaço de tempo para saldar sua dívida, onze mil florins, correspondentes a cerca de três anos de seu soldo, algo que não lhe passara pela cabeça enquanto estava perdendo, somente agora.

Ele é tomado não exatamente pelo desespero, mas pelo remorso, todos somos quando damos um passo maior do que a perna ou coisa parecida, e mesmo que Willi não seja lá um militar exemplar, sentimos compaixão por ele. Schnitzler faz com que fiquemos angustiados durante a jogatina e depois, pela situação em que o jovem se meteu, com seu comportamento errático: ao buscar a independência financeira no jogo ele começou a cavar com as próprias mãos o buraco de sua miséria.

Por fim, Willi tenta sair de sua dramática situação e recorre a pessoas que acredita poderiam ajudá-lo financeiramente nessa hora, aos quais dá sua palavra de honra de que lhes pagará tudo. Mas conseguirá ele saldar sua dívida, abandonará o jogo de vez ou, se nada disso der certo, buscará para seu caso algum tipo de solução condenável, mas que também lhe restitua um pouco de honradez no final?

Lido entre 16 e 21/10/2017.
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Marc 31/05/2017

Não quero “psicologizar” o livro, mas quando se fala de Schnitzler, ao menos uma menção não pode deixar de ser feita. Seus personagens não são ferozes homens guerreiros, decididos e firmes, capazes de enfrentar as tempestades e seguir inabaláveis no rumo escolhido até que alcancem o que tanto buscavam. Nada como uma extraordinária força de vontade, caráter, nem mesmo a inteligência, que diante das adversidades é capaz de fazer desviar dos obstáculos mais severos que poderiam destruir ou ferir o herói de modo grave. Há, ao contrário, um personagem que imagina não ser tão atraente para as mulheres porque não tem o dinheiro que outros têm. Note bem: sua desvantagem se encontra não em algo objetivo, quantificável e que salte aos olhos de quem passa os olhos de relance sobre ele; não, sua inferioridade se encontra numa percepção totalmente subjetiva. O tenente diz para si mesmo que quando tiver dinheiro vai gozar de belas companhias femininas, e entende que seu credor, o cônsul Schnabel, goza dessas companhias por ser rico apenas.

Ora, sua condição esteve perto de mudar radicalmente quando teve sorte no jogo e conseguiu juntar uma pequena fortuna, para os seus padrões limitados. Mas algo o força a continuar no jogo, cada vez arriscando mais até que o resultado é desastroso, adquirindo uma dívida que está muito além de sua capacidade de quitação.

É como se ele entrasse numa espécie de transe, em que mesmo consciente dos riscos que estavam à sua frente, não conseguisse parar, nem mesmo quando outros o advertiam de que a sorte o havia abandonado e era melhor desistir. Ele continua, febril, tentando fazer frente a alguma coisa que não sabe bem o que é, mas que teima em enfrentar e que o derrota seguidas vezes. Imagine alguém que supõem ser o jogo uma espécie de batalha, que precisa ser vencida e que só pode terminar quando um dos lados estiver morto ou rendido. Bastaria, nesse caso, não render-se, não reconhecer a derrota, negando completamente todos os indícios da realidade que estava a sua frente, na mesa de jogo. Só que essa batalha não depende de nada além de sorte; não há estratégias vencedoras, nem manobras táticas que possam mudar algo que depende exclusivamente da sorte. Ele tenta derrotar a má sorte com as mesmas armas que essa usa contra ele . É como tentar apagar um incêndio com gasolina. Esse estado, em que está consciente, mas não consegue raciocinar com base nos elementos visíveis é que está sendo descrito aqui.

Ao mesmo tempo, e isso é fundamental, como sua interpretação das relações humanas é profundamente deturpada por uma exacerbação do poder (que é força, mas também dinheiro), é óbvio que vai sentir-se acabado quando tem que pedir dinheiro a uma mulher. E não porque as mulheres estejam “empoderadas”, mas porque ele entende que o poder é um mediador nas relações humanas, que elas não são nada mais do que um jogo entre aquele que pode mais e ordena, enquanto outros precisam esperar sua vez, ou conquistar meios mais rápidos, como o jogo supostamente permitiria. Não que a hierarquia deveria ser abolida, que somos todos iguais ou qualquer coisa do gênero. Wilhelm é um militar, ele sabe que a hierarquia é também um princípio ordenador, mas o que ele deseja, o tempo todo, é estar na posição mais alta, sem ninguém lhe exigindo nada e podendo dispor das pessoas como bem entender. Evidentemente, com um pensamento assim, ele entende pouco do que são as relações humanas e qual o motivo de existir hierarquia.

Ouso dizer que Aurora é uma novela sobre a destruição das relações humanas. Schnitzler percebe, não apenas nesse livro, que aquilo que mantém nossa sociedade coesa é não apenas o afeto, mas também, entre outras coisas, a hierarquia. Ela justifica o esforço de uma vida para alcançar melhores condições materiais, e isso não pode ser entendido apenas como avareza ou sede de poder. O cônsul não é uma pessoa desprezível, insensível, que ignora a fragilidade dos mais fracos. Ele tem plena consciência que as regras existem para ser seguidas, que existe sentido nisso. Já Wilhelm, procura o tempo todo romper com essa lógica. Por vezes ele usa o dinheiro, apela para laços familiares (as quais ele, no fundo, despreza), afetos, amizades, sorte. Qualquer coisa que sirva como instrumento para quebrar a rigidez desse mundo hierarquizado.

E finalmente podemos comentar a verdadeira lição moral desse livro. O mundo como está, hierarquizado, não lhe agrada nem um pouco, porque sua posição é muito inferior a pessoas que só lhe provocam desprezo. Wilhelm sonha subverter essas estruturas. Mas ele não é um herói clássico, que lutaria contra o que considera injusto até conseguir a vitória ou morrer tentando. Ele se vale de qualquer coisa, absolutamente qualquer coisa, que esteja a sua mão para desordenar o mundo, desde que seja um caminho curto e fácil. Mas ele não procura igualdade, sonha apenas chegar mais rápido, enquanto ainda é jovem, bonito e vigoroso, para poder aproveitar noites de sonho com lindas mulheres. O mundo é apenas instrumento de seu prazer, pois ele considera injusto não gozar a vida enquanto outros parece que o fazem. É injusto e deveria ser diferente. O mundo precisa ser refeito, desde que ele alcance e possa preservar certos privilégios e o restante do mundo, que se dane. O caminho curto, fácil, que leva a seu prazer, mesmo que se justifique para si mesmo moralmente. Wilhelm não deseja derramar sangue, não fala em revolução, mas sua indigência moral é exatamente o quadro de todos aqueles que sonham com o mundo cor de rosa, livre do pai exigente e da mãe apavorada com sua balada e suas drogas e seus divertimentos adolescentes.

Alguém poderia objetar que Wilhelm não deseja a revolução, que ele não quer alterar a ordem do mundo, apenas alcançar um posto de destaque, que lhe permita viver como um rei. Mas será que aquele subversivo típico, que todos conhecemos, deseja de fato modificar o mundo desde sua fundação até o último resquício? Quando se fala em distribuição de riquezas, o que está implícito é que o mundo vai continuar igualzinho, apenas mais igualitário (o que eles entendem por justiça). Tenho certeza que se alguém olhar o livro com essas lentes vai perceber a terrível inveja que o poder alheio desperta no protagonista, ao mesmo tempo que ele deseja alcançar aquele lugar e poder se esbaldar, o que se poderia chamar de justiça social. Ele sonha ser rico, não acabar com a riqueza (ao menos não a própria riqueza, apenas a dos outros).

A percepção de que ele, afinal, poderia ser também usado para uma noite de prazer, ser um instrumento também, o abala a ponto de provocar sua loucura. Geralmente, quando a realidade, aquela mesma com hierarquia, com regras, com lutas e derrotas, chega a esses tipos, o choque é muito violento. Wilhelm não suporta descobrir que nesse mundo até uma mulher pode lhe ser superior, desde que tenha dinheiro.
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