Marc 31/05/2017
Não quero “psicologizar” o livro, mas quando se fala de Schnitzler, ao menos uma menção não pode deixar de ser feita. Seus personagens não são ferozes homens guerreiros, decididos e firmes, capazes de enfrentar as tempestades e seguir inabaláveis no rumo escolhido até que alcancem o que tanto buscavam. Nada como uma extraordinária força de vontade, caráter, nem mesmo a inteligência, que diante das adversidades é capaz de fazer desviar dos obstáculos mais severos que poderiam destruir ou ferir o herói de modo grave. Há, ao contrário, um personagem que imagina não ser tão atraente para as mulheres porque não tem o dinheiro que outros têm. Note bem: sua desvantagem se encontra não em algo objetivo, quantificável e que salte aos olhos de quem passa os olhos de relance sobre ele; não, sua inferioridade se encontra numa percepção totalmente subjetiva. O tenente diz para si mesmo que quando tiver dinheiro vai gozar de belas companhias femininas, e entende que seu credor, o cônsul Schnabel, goza dessas companhias por ser rico apenas.
Ora, sua condição esteve perto de mudar radicalmente quando teve sorte no jogo e conseguiu juntar uma pequena fortuna, para os seus padrões limitados. Mas algo o força a continuar no jogo, cada vez arriscando mais até que o resultado é desastroso, adquirindo uma dívida que está muito além de sua capacidade de quitação.
É como se ele entrasse numa espécie de transe, em que mesmo consciente dos riscos que estavam à sua frente, não conseguisse parar, nem mesmo quando outros o advertiam de que a sorte o havia abandonado e era melhor desistir. Ele continua, febril, tentando fazer frente a alguma coisa que não sabe bem o que é, mas que teima em enfrentar e que o derrota seguidas vezes. Imagine alguém que supõem ser o jogo uma espécie de batalha, que precisa ser vencida e que só pode terminar quando um dos lados estiver morto ou rendido. Bastaria, nesse caso, não render-se, não reconhecer a derrota, negando completamente todos os indícios da realidade que estava a sua frente, na mesa de jogo. Só que essa batalha não depende de nada além de sorte; não há estratégias vencedoras, nem manobras táticas que possam mudar algo que depende exclusivamente da sorte. Ele tenta derrotar a má sorte com as mesmas armas que essa usa contra ele . É como tentar apagar um incêndio com gasolina. Esse estado, em que está consciente, mas não consegue raciocinar com base nos elementos visíveis é que está sendo descrito aqui.
Ao mesmo tempo, e isso é fundamental, como sua interpretação das relações humanas é profundamente deturpada por uma exacerbação do poder (que é força, mas também dinheiro), é óbvio que vai sentir-se acabado quando tem que pedir dinheiro a uma mulher. E não porque as mulheres estejam “empoderadas”, mas porque ele entende que o poder é um mediador nas relações humanas, que elas não são nada mais do que um jogo entre aquele que pode mais e ordena, enquanto outros precisam esperar sua vez, ou conquistar meios mais rápidos, como o jogo supostamente permitiria. Não que a hierarquia deveria ser abolida, que somos todos iguais ou qualquer coisa do gênero. Wilhelm é um militar, ele sabe que a hierarquia é também um princípio ordenador, mas o que ele deseja, o tempo todo, é estar na posição mais alta, sem ninguém lhe exigindo nada e podendo dispor das pessoas como bem entender. Evidentemente, com um pensamento assim, ele entende pouco do que são as relações humanas e qual o motivo de existir hierarquia.
Ouso dizer que Aurora é uma novela sobre a destruição das relações humanas. Schnitzler percebe, não apenas nesse livro, que aquilo que mantém nossa sociedade coesa é não apenas o afeto, mas também, entre outras coisas, a hierarquia. Ela justifica o esforço de uma vida para alcançar melhores condições materiais, e isso não pode ser entendido apenas como avareza ou sede de poder. O cônsul não é uma pessoa desprezível, insensível, que ignora a fragilidade dos mais fracos. Ele tem plena consciência que as regras existem para ser seguidas, que existe sentido nisso. Já Wilhelm, procura o tempo todo romper com essa lógica. Por vezes ele usa o dinheiro, apela para laços familiares (as quais ele, no fundo, despreza), afetos, amizades, sorte. Qualquer coisa que sirva como instrumento para quebrar a rigidez desse mundo hierarquizado.
E finalmente podemos comentar a verdadeira lição moral desse livro. O mundo como está, hierarquizado, não lhe agrada nem um pouco, porque sua posição é muito inferior a pessoas que só lhe provocam desprezo. Wilhelm sonha subverter essas estruturas. Mas ele não é um herói clássico, que lutaria contra o que considera injusto até conseguir a vitória ou morrer tentando. Ele se vale de qualquer coisa, absolutamente qualquer coisa, que esteja a sua mão para desordenar o mundo, desde que seja um caminho curto e fácil. Mas ele não procura igualdade, sonha apenas chegar mais rápido, enquanto ainda é jovem, bonito e vigoroso, para poder aproveitar noites de sonho com lindas mulheres. O mundo é apenas instrumento de seu prazer, pois ele considera injusto não gozar a vida enquanto outros parece que o fazem. É injusto e deveria ser diferente. O mundo precisa ser refeito, desde que ele alcance e possa preservar certos privilégios e o restante do mundo, que se dane. O caminho curto, fácil, que leva a seu prazer, mesmo que se justifique para si mesmo moralmente. Wilhelm não deseja derramar sangue, não fala em revolução, mas sua indigência moral é exatamente o quadro de todos aqueles que sonham com o mundo cor de rosa, livre do pai exigente e da mãe apavorada com sua balada e suas drogas e seus divertimentos adolescentes.
Alguém poderia objetar que Wilhelm não deseja a revolução, que ele não quer alterar a ordem do mundo, apenas alcançar um posto de destaque, que lhe permita viver como um rei. Mas será que aquele subversivo típico, que todos conhecemos, deseja de fato modificar o mundo desde sua fundação até o último resquício? Quando se fala em distribuição de riquezas, o que está implícito é que o mundo vai continuar igualzinho, apenas mais igualitário (o que eles entendem por justiça). Tenho certeza que se alguém olhar o livro com essas lentes vai perceber a terrível inveja que o poder alheio desperta no protagonista, ao mesmo tempo que ele deseja alcançar aquele lugar e poder se esbaldar, o que se poderia chamar de justiça social. Ele sonha ser rico, não acabar com a riqueza (ao menos não a própria riqueza, apenas a dos outros).
A percepção de que ele, afinal, poderia ser também usado para uma noite de prazer, ser um instrumento também, o abala a ponto de provocar sua loucura. Geralmente, quando a realidade, aquela mesma com hierarquia, com regras, com lutas e derrotas, chega a esses tipos, o choque é muito violento. Wilhelm não suporta descobrir que nesse mundo até uma mulher pode lhe ser superior, desde que tenha dinheiro.