Albarus Andreos 26/04/2011O estranho e a fantasia em A Gárgula, de Andrew Davidson.Vamos lá. A Gárgula (Ed. Rocco, 2010), começou para mim como um autêntico livro de terror. Você, leitor, não faz idéia do que são as primeiras páginas do livro que se inicia com uma besta dirigindo um carro em alta velocidade cheio de uísque no cérebro. Um acidente acontece e aí é que começa a coisa feia, tão fantasticamente contada pelo autor.
O personagem principal é, supostamente, quem conta a história. Ele começa pelo acidente, como já falei, ocorrido por ter sido atacado (e isso ainda não está bem claro de início), por uma saraivada de flechas incendiárias, vinda de um lado da estrada enquanto dirigia como um desvairado. Como o cara está bebaço, não se pode concluir se isso aconteceu mesmo ou se é apenas efeito do álcool. A sugestão óbvia é que a segunda hipótese, a mais plausível, é o que realmente aconteceu. A habilidade de Andrew Davidson, o autor, em conduzir-nos na dúvida do que é real e do que imaginário neste livro arrebatador é admirável! Mas vamos devagar com o andor...
No acidente, o cara está dentro do carro, todo ferrado; uísque derramado no carro todo e sobre o colo, uma chama se acende em algum lugar do lado de fora e não demora muito para o sujeito estar dentro das chamas. Por sorte (sorte?) sobrevive e é levado para a seção de queimados de um bom (bota bom nisso!) hospital de recuperação de queimados.
As cirurgias, primeiro, para mantê-lo vivo, depois as constantes operações para remoção de tecido queimado, a dor lancinante destes processos e sua recuperação também excruciante, são o tom inicial do livro. As descrições são minuciosas. O autor quer que você sinta o mesmo que o sujeito sendo submetido aos processos de tortura que salvarão sua vida. Senti arrepios até o último fio de cabelo. É chocante... Dá vontade vomitar!
Temos o antes lindíssimo astro de cinema pornô (sim!), muito bem sucedido, que vai tomando cada vez mais consciência da cagada que cometeu e o sentimento mais antigo depois do medo: a dor, e após a morfina fazer lá seus efeitos, o sujeito passa a entender o que lhe aconteceu. Antes que você perceba (como ele), pois a dor ainda está te tirando arrepios do corpo, o drama que uma pessoa tão ligada à própria aparência se inicia. A única coisa que ele (em nenhum momento ficamos sabendo seu nome. O romance é narrado em primeira pessoa pelo personagem narrador) realmente quer fazer ao ter condições de, sequer, poder se mover, é fazer o que o fogo não conseguiu: dar cabo da vida que, teimosamente, ainda lhe resta.
Vem então o processo de refazer a pele e os tendões danificados. Fica no ar a possibilidade de refazer até o pênis do ator pornô, ironicamente um dos pedaços perdidos no acidente. Depois deve-se fazer funcionar o corpo grotesco, com exercícios físicos e fisioterapia, tudo regado a muitas novas doses de agonia e sofrimento. Outros personagens são introduzidos até aqui, como o psiquiatra Gregor, a médica Nan e a fisioterapeuta Sayuri, cada um deles contando parcelas de suas vidas sofridas, seus relacionamentos internos e os motivos que os levaram a trabalhar no meio de tanto sofrimento, pois há, claro, outros pacientes. Alguns nos são apresentados superficialmente, mas há alguém que definitivamente entra para ser a razão da história se desenvolver, lentamente, mas ir adiante para dentro da fantasia.
Marianne Engel aparece como uma paciente que não bate bem da bola. Ela tem falas estranhas e sabe coisas sobre o personagem principal. Fala dele como alguém já conhecido há muito (muito!) tempo. Desaparece por uns dias e retorna sem avisar várias vezes. Traz presentes, jantares nababescos e alguns a conhecem como uma antiga paciente do Dr. Gregor, outros não se simpatizam muito com ela e Marianne diz ter 700 anos (hã?).
Marianne começa a detalhar tanto sua vida dentre freiras alemãs nos anos 1300, e demonstrar conhecimento por línguas estrangeiras e tradução de livros antigos. Parece-nos que o autor quer que acreditemos realmente que ela fala a verdade. Ela esculpe gárgulas e grotescos (gárgulas são decorações arquitetônicas medievais, colocadas no alto de edifícios para verterem água nas chuvas. Já grotescos são apenas estátuas de demônios e criaturas fantásticas) e ganha muito dinheiro com isso. O personagem principal se apaixona por ela de um modo anômalo, não com um clássico verdadeiro amor, mas por gratidão, como se ela fosse a esperança de uma vida suportável que não pode ter se não for ao lado dela. O verdadeiro amor, contudo está só iniciando os primeiros passos. É um monstro, tem consciência de seu estado, mas sinceramente não vê outra alternativa a não ser ir com Marianne para sua casa para que ela cuide dele, lhe dê banhos e sustente seu exorbitante tratamento pós hospitalar.
Após a arrasadora e genial primeira parte no hospital, o autor usa então o personagem principal como escada para Marianne contar histórias de sua vida medieval. Ele serve para fazer perguntas e ela responde com capítulos inteiros de enredo. Ponto negativo. Isso é uma falha, mas vamos considerar de menos gravidade. Há ainda segredos demais para se adivinhar o final, que não é nem um pouco previsível. Seria Marianne quem diz ser e este é um conto fantástico, ou estamos no reino de Freud e apenas vemos a narrativa do estranho?
As partes do livro que remetem ao passado de Marianne Engel não são tão boas como as passadas no presente. São uma coleção de contos vividos em passados longínquos ou nem tanto, por personagens diferentes, que se ligam sempre na tragédia e no amor que persevera depois da morte do ente querido, ou na própria, por profundo sentimento pelo outro. Vão sendo colhidos e apresentados pela hipotética feira de 700 anos, e isso é explicado pelo fato de que alguns destes contos referem-se a ela e ao narrador.
É um recurso muito comum na literatura, mas que não dá coesão ao texto. Um ou outro, tudo bem, mas o livro de Andrew Davidson explora essa técnica exaustivamente, dando a impressão que não consegue levar um texto linearmente. Quando Marianne entra numa parte boa, ela corta e voltamos ao presente. E o narrador (o cara queimado) aceita isso sempre passivamente. O que nos sugere Davidson é que ela, sendo uma debilóide, pode contar a história que quiser e fazer isso como quiser e ele não quer atrapalhar. Isso não cola muito bem. Não há argumentação ou contra-argumentação do narrador no papel de ouvinte, quando qualquer um de nós perguntaria e questionaria as coisas (pelo menos algumas delas). Quando ele faz isso, Marianne convenientemente pede para ele ter paciência e esperar, porque ela vai contar tudo o que ele quer saber, mais adiante. O narrador aceita, simplesmente, para que a sucessão de capítulos, um após outro, nos venha num intercalar da convivência deles com as histórias do passado.
Temos uma história sensível e pungente. Uma história longa sobre paixão que se desdobra na imaginação (ou não!) de uma mulher e um homem, este enclausurado dentro de um corpo monstruoso após o acidente e o fogo, alguém criado por estranhos desde pequeno que nunca conheceu o amor verdadeiro. Ele é alguém “sem coração”, uma gárgula que é esculpida e burilada então pelo carinho de uma sensível escultora, cujo trabalho nada mais é que retirar criaturas horrendas de dentro da pedra e “dar-lhes vida”. Marianne acha ter muitos corações dentro do peito, num número limitado, contudo, e o coração destinado ao narrador é o último que tem.
Nunca, no texto, fica claro quando é que esta missão de “dar corações” apareceu na vida de Marianne. Há um distanciamento que não cola com o que o autor quer sugerir e o que lemos. Já a Marianne antiga, das “recordações”, é muito mais plausível psicologicamente, enquanto que a contemporânea parece ser realmente muito confusa. Na verdade, a opção de fazer da moça uma maluca, ou invés de ser realmente quem diz, teria que considerar que tudo que veio no decorrer do livro, as “coincidências” e coisas que Marianne possui, ou sabe, não teriam explicação. Teríamos que considerar estas coincidências e pronto, coisa que não é muito fácil de aceitar, Mas fica realmente tudo esclarece quando Jake explica para o acidentado narrador como conheceu Marianne.
Sumarizando: ótimo livro. Repleto de situações psicologicamente instigantes. Narrativa de primeiríssima qualidade. Recomendadíssimo!