maria.e.sousa.7 18/01/2024
Palestrinha / Mansplainning
Tinha muita expectativa sobre este livro e me desapontei profundamente, de várias maneiras, por diversos motivos. Não consigo decidir se Renato Noguera é um equivocado bem-intencionado, mas ingênuo, ou se está simplesmente fazendo mansplaining, na cara dura e lavada, achando que está abafando. Um homem querendo falar de questões femininas, sem preparo, achando que tem propriedade para tal!
Ele se propõe a discutir a condição da mulher e a forma como os seus papéis e o seu lugar se estruturaram na sociedade ocidental a partir de recortes de quatro mitologias: a grega, a iorubá, a judaico-cristã e a tupi, dos povos originários do Brasil. Consegue? Falha feiamente!
A primeira parte dedicada à mitologia grega é a maior decepção. Ignora completamente autoras já consideradas autoridades na análise psicológica da mitologia grega, propondo interpretações completamente contrárias a outras amplamente aceitas, como dizer, por exemplo, que a morte de Órion por Artemis é uma metáfora de introjeção de valores sexistas ? Shinoda-Bolen é uma autora que afirma que o que mata Órion é a natureza excessivamente competitiva de Artemis. Também diz que Hera é a Deusa da Maternidade (oii???) - a deusa da maternidade, ou Deusa-Mãe na mitologia grega, nessa geração olímpica, é Deméter. Maternidade é a última coisa com que se vai associar a deusa Hera!
Em algumas passagens ele parece impor visões muito próprias de alguns mitos, sem embasamento consistente, no melhor estilo ?vozes da minha cabeça? ? como na passagem em que ele analisa o mito de Io: Zeus transforma Io em vaca para escondê-la de Hera e Noguera conecta essa passagem com os modernos xingamentos animalescos direcionados a mulheres (vaca, ? #$%!& ) ? achei esse argumento fraquíssimo, capenga mesmo! O resultado final fica extremamente superficial.
De modo geral, essa parte sobre a mitologia grega, dá a sensação de que ele queria falar das questões femininas dentro de um determinado contexto mitológico, talvez explorando principalmente a mitologia iorubá, com a qual talvez se sinta mais afinado, mas parece que se sentiu obrigado a recorrer também aos mitos gregos, afinal, a sociedade ocidental é largamente estruturada sobre a civilização greco-romana. Porém, o resultado fica raso e sofrível. Dá uma sensação de algo feito de forma apressada, quase que para cumprir tabela.
Embora eu tenha menos familiaridade com a mitologia iorubá do que tenho com a grega, na segunda parte, em que Noguera trata desta mitologia, a iorubá, tive novamente a sensação de muita ?forçação? de barra, como se ele distorcesse algumas estórias, moldando esses mitos para caber em, e sustentar a argumentação que ele quer defender. Sensação de desonestidade intelectual.
A parte mais palatável para mim é a que trata da mitologia judaico-cristã, onde ele analisa os mitos de Eva e Lilith ? embora seja curta e os mitos contados de forma muito rápida ? talvez porque é a mitologia mais próxima da consciência e do inconsciente coletivo ocidental e, sendo a mitologia mais amplamente conhecida, analisada e ?compreendida? na nossa cultura, a sensação que temos é que a análise flui de maneira um pouco mais confortável e coesa. Também é possível que isso se dê porque, mesmo que o indivíduo não seja nominalmente cristão e não professe essa fé, ao nascer numa cultura e numa sociedade majoritariamente cristãs, ele está necessariamente exposto e imerso nesse inconsciente cultural, e essa mitologia reverbera sobre esse indivíduo, consciente e/ou inconscientemente. É muito possível que isso ocorra com o autor também, daí a maior fluidez neste capítulo. Eu gostei de relembrar o Gênesis e algumas passagens dessa mitologia. E é onde ele comete menos deslizes, a meu ver.
O autor termina trazendo alguns mitos de raiz tupi, de povos originários do Brasil. Mas mesmo aqui percebemos muitos buracos. No mito de Iara, por exemplo, ele faz uma inferência de que os irmãos matam Iara porque ?não suportam a vergonha de perder território para uma mulher? ? na versão que ele mesmo contou, só há menção aos ciúmes em relação ao afeto e atenção dos pais, não há menção a ?território?.
O autor ainda menciona a psicologia analítica várias vezes, estando Jung presente na bibliografia, porém comete erros conceituais muito elementares, como dizer que as deusas são arquétipos ? as deusas NÃO são arquétipos, são imagens arquetípicas; o arquétipo é impessoal e não tem uma imagem definida; cada cultura tem suas imagens arquetípicas dos arquétipos universais. Outro erro básico é falar da mulher que ?encarna? o arquétipo de deusa X ou Y: nenhuma mulher e nenhum ser humano encarna ou ativa arquétipo nenhum, arquétipo de nada! Arquétipos são impessoais e o máximo que pode acontecer é uma pessoa, extremamente inconsciente e com pouca estrutura egóica, ser possuída por um arquétipo, o que configura um grave problema psíquico!
O autor faz uso excessivo do termo ?patriarcado? ? parece que ele descobriu a pólvora e o patriarcado sozinho! Ele explica o patriarcado dele!
Em resumo, achei o autor presunçoso, equivocado, paternalista e um baita de um palestrinha. Claro, pode ser que seja apenas um equivocado bem-intencionado... parece muito querer agradar ao público feminino para o qual escreve (e tem muitas mulheres caindo de amores) ? estaria em busca de alguma redenção?
Equívoco ?? ?a intenção do livro foi revalorizar, ressignificar e assumir como positivos os atributos femininos? ? e nós precisamos de um HOMI para nos dizer que os atributos femininos são positivos em nos autorizar a exercita-los? ? É muita presunção!
Equívoco ?? o sujeito ainda tem a pretensão de achar que sabe o que é o que não é ser mulher: ?Ser mulher não é se enquadrar em um modelo de vestido, um corte de cabelo, se dedicar à maternidade ou inconscientemente assumir uma culpa que viria lá do pecado original? ? é mesmo? Jura? Como não pensei nisso antes??? Contraditoriamente, ele diz que as deusas trazem ?à cena um desejo por desnudar o feminino constituído pelo olhar masculino? ? e ele, também um HOMI, não está trazendo um ?olhar masculino? mais uma vez, e se arrogando em ensinar para mulheres o que é ser mulher???
Palestrinha presunçoso! ?
2/5 - esse 2 é só porque gostei da parte judaica.
P.S.: ponto positivo: ele se refere à palavra ?personagem? sempre no feminino, como é correto!