Maria - Blog Pétalas de Liberdade 20/06/2018Resenha para o blog Pétalas de Liberdade"Talvez seja esta uma forma de extrair da morte grãos de paz." (página 87)
Temos uma narradora sem nome que certo dia encontra um homem voltando para casa. Ela, invisível, o segue. Descobre onde ele mora, entra em sua casa e vê seu estranho costume de fechar porta e janelas, vedando toda fresta para que os sons do exterior não entrem, observa como esse homem desenha por horas e horas antes de dormir. O que ele desenha? Os animais que precisa abater em seu trabalho no matadouro todos os dias. Um trabalho que ele não escolheu para si, visto que tinha outros sonhos, mas foi o trabalho que aquela cidade lhe impôs.
"Nas ruas onde hoje à noite homens brigarão rixas simples de porta de bar, nestas mesmas ruas, escondidos nos desvãos das pedras, ainda persistem dessa forma sons antigos. Mas para ouvi-los há que se ignorar os primeiros deles, os evidentes: ignorar os sons mais jovens, recém-nascidos, de superfície e relevo espessos - gritos e copos que se enchem; pois numa camada logo abaixo destes e quase inaudível ainda existe o som remoto em sua origem - o dos tiros sobre um soldado debaixo de fogo nas trincheiras; o das mãos do centurião de Roma escavando o solo, estourando torrões de terra, forma única de se esquecer a dor dos ferimentos. Aquele capaz de captar em sua plenitude os sons veria assim se dissolver o tempo. É como se os passos que durante anos contribuíram para desgastar degraus de mármore ressoassem no mesmo instante aqui agora. Curioso, porém, que todos estes sons carreguem um mesmo signo: o da lembrança que lateja e dói, propagando-se pelo ar como herança de anéis concêntricos.
Os sons têm vida própria." (página 68, grifo meu)
Talvez vocês já tenham lido em algum lugar que o som se propaga em ondas, coisa que aprendi nas aulas de Física na escola, mas o capítulo treze do livro explica isso de forma bem compreensível para quem ainda não sabe. E se os sons se propagam em ondas, eles nunca desaparecem completamente, só deixam de ser captados pelos ouvidos humanos. Esses sons que ficam na memória do homem que trabalha no matadouro, os sons dos bezerros em seus últimos segundos de vida, sons que podem ser aterrorizantes, sufocantes! Sons que Lázaro precisa calar, tirar de dentro de si, colocar em outro lugar, já que esses sons não morrem.
Lázaro, é esse o nome que nossa narradora dá ao homem que passa a observar. Na Bíblia são mencionados dois Lázaros, o que Jesus ressuscita, e um leproso de uma parábola, o segundo tem mais a ver com o personagem do livro (vale lembrar que hoje a lepra ou hanseníase é uma doença que tem tratamento e cura, não condenando mais os doentes a serem excluídos da sociedade). Qual será o mal de Lázaro: aquele que lhe atinge o corpo, ou o que lhe tira o sossego da mente, os sons que só se calam quando são colocados no papel?
"Chamei-te Lázaro, nomeei-te Lázaro, batizei-te Lázaro. Chamei-te Lázaro, muito embora nunca tenha sabido teu nome. Naquela noite, Lázaro, a tarde assentava seu fecho, e do cume de um monte eu vi teu corpo na distância pela trilha. Passos secos como os do homem do poema, braços pesados, dormentes, tu palmilhavas a estrada que, dentro de instantes, dará no mar. Estrada que não é de Minas, mas na qual teus pés ainda assim caminham. Fachos de luzes de homens cortavam o escuro, marcavam ossaturas de sangue em tua pele, faziam com que vozes logo atrás subissem de tom e timbre, estimulando os cães. Mas, Lázaro, escuta: o mar não tarda. Escalado o monte, haverá o cume. E ao fim, que se aproxima, uma descida sobre encostas de arbustos. O fim." (página 14, grifo meu)
Do Krishna Monteiro eu já havia lido no ano passado "O que não existe mais", um livro de contos indicado ao Prêmio Jabuti. Comecei a leitura de "O mal de Lázaro" sem expectativa alguma, mas já nas primeiras páginas fui cativada pela narrativa. Essa mulher de quem nem o nome sabemos, a nossa narradora, descreve o que vê com tamanha vivacidade, que é muito fácil imaginar a história, imaginá-la nos contando sobre a rotina de Lázaro, sobre a luta dele com a crueldade de seu trabalho.
Na minha cidade o matadouro municipal fechou faz pouco tempo, mas ainda me recordo dos comentários sobre como era trabalhar nele, sobre os barulhos dos animais na hora em que eram mortos, um trabalho que não deve ser dos mais agradáveis. Assim como a lepra não é agradável, uma doença que vai atingindo cada pedacinho do corpo, pouco a pouco, e que na época em que a história se passa, precisava ser escondida. Uma época e uma cidade onde se acredita em milagres, como num homem fazendo outro voltar da morte, e esse homem que fez o outro voltar a viver passa a ser visto como a solução de todos os problemas. Mas ele próprio tem seus problemas, como os sons que não consegue calar. Ouvir esses sons eternos seria uma benção ou uma maldição?
"Desenhas como quem segura firme uma recém-descoberta aldrava, sabendo estar agora em seu poder bater à porta - ou calar o som" (página 88)
Sinto que já divaguei demais no parágrafo anterior. Enfim, "O mal de Lázaro" é um livro relativamente pequeno, com menos de duzentas páginas, e que eu li em dois dias, bem rápido pros meus padrões. E eu o li em pouco tempo não tanto pelo número de páginas, mas sim pela forma como a história me prendeu. Eu ficava mais curiosa a cada capítulo com o destino de Lázaro, ainda que já imaginasse o provável desfecho, torcia por uma reviravolta, um milagre que o libertasse daquela vida! Assim como ficava encantada com toda a questão dos sons que nunca se extinguem e inquieta para descobrir quem era a narradora. Como já comentei, a narradora fala com tanta vivacidade que é impossível não imaginá-la nos contando a história, mas isso é mérito da escrita do Krishna, uma escrita bela, como disse na resenha de "O que não existe mais", mas uma escrita que me agradou ainda mais nessa segunda obra que li dele, palavras usadas de forma poética sim, mas compreensível, desenhando as cenas.
Na sinopse consta que o livro foi inspirado no poema "A Máquina do Mundo" do Carlos Drummond de Andrade, um poema sobre um homem que caminha numa estrada de Minas Gerais, que é o meu amado estado, e mesmo que o Krishna não seja mineiro, foi muito fácil encontrar na obra semelhanças com a minha terra, com cenas que conheço vivendo numa cidade do interior. Acredito que o leitor certamente conhecerá novas palavras durante a leitura, e se alguma dúvida surgir, uma simples busca no Google ou dicionário pode resolvê-la, e vale muito a pena embarcar nessa história onde as respostas vão sendo dadas aos poucos.
A edição da Tordesilhas tem uma capa condizente com a trama, em tons de roxo, páginas amareladas, boa revisão, letras, margens e espaçamento entre uma linha e outra de bom tamanho.
Fica a minha recomendação para que leiam "O mal de Lázaro", um dos melhores nacionais que já li. Um daqueles livros onde, por mais que eu fale, sempre sentirei que ainda há algo a ser comentado, destacado, mas fiz o melhor que pude nessa resenha (muito prazerosa de ser escrita, reler alguns trechos para escrevê-la já foi muito bom, tanto que pretendo reler toda a obra). E se ela ainda não foi o suficiente para convencê-lo a ler, dê uma chance assim mesmo ao livro se a oportunidade surgir. Se a leitura dele lhe prender como me prendeu, se a escrita do autor lhe encantar como me encantou, se você sentir a mesma vontade de entrar na história e proteger o protagonista de tudo e de todos como eu senti, certamente terá valido a pena!
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