Marinho 27/11/2020
Soberania é ter poder sobre a morte
No início da pandemia do coronavírus, um Brasil estarrecido via declarações de um certo presidente que demonstravam um certo desdém para com as vidas alheias. “É só uma gripezinha” foi uma das afirmações vindas do ocupante do mais alto cargo institucional do país ao passo em que as mortes diárias decorrentes do Covid-19 chegaram a bater um recorde que passava de 1600. Em meios aos discursos dos apoiadores que se difundiram no debate público, estava o argumento de que era necessário salvar a economia, que o país não poderia parar. E, quando os números deixaram claro que a parcela historicamente mais vulnerável da sociedade brasileira, a população pobre, negra e periférica, era também a mais afetada pela pandemia, não era possível deixar de pensar que estas vidas estavam sendo vistas pelo estado, como sempre foram, enquanto descartáveis. É a partir desta reflexão que podemos entender a necropolítica de Mbembe: é o Estado se reservando ao direito de escolher quem deve morrer e quem pode viver.
A filosofia moderna ocidental cunhou uma ideia de soberania democrática atrelada à razão – eurocêntrica -, no qual o papel do Estado seria de assegurar as liberdades, igualdades e direitos individuais entre os homens. Uma das perguntas fundamentais de Achile Mbembe em “Necropolítica” é: “liberdade para quem?”. Logo no início de sua argumentação, trata de criticar a (falta de) aplicação de tais preceitos na dimensão global. Quando aplicada aos povos não-europeus, tal noção de soberania se modifica, transformando-se no poder de instrumentalizar os corpos segundo o interesse do Estado. O conceito de “necropolítica” que Mbembe traz para analisar os episódios de genocídios programados e violência sistêmica é de fundamental importância para o campo das ciências humanas, do Direito às Relações Internacionais, pois é a partir de tal noção que podemos pensar as políticas de repressão históricas acometidas a, no caso brasileiro, populações indígenas e afrodescendentes.
O conceito, portanto, está intimamente ligado à ideia de racismo. Foi com base nas diferenças categóricas da identidade que os europeus legitimaram sua dominação aos demais grupos, com base na lógica dicotômica “nós x eles”. A escravidão seria uma das primeiras instâncias da necropolítica na modernidade, com o corpo submisso desprovido de autonomia, direitos e existência política, logo, desprovido de própria existência espiritual enquanto ser humano. O espaço colonizado configuraria-se como “não-espaço”, no sentido que era compartimentalizado, com diferenças sociais claras, e instituições que garantiam a hierarquia do poder com base no terrorismo de Estado. Os grupos dominantes que guiavam o Estado colonial não contavam, porém, com a capacidade dos grupos subalternizados em interagir e ressignificar os símbolos ao seu redor, em um movimento social no qual podemos caracterizar como “resistência”.
O texto de Mbembe, no entanto, não se limita a conceituar e exemplificar as aplicações materiais da necropolítica, mas tece diversas reflexões filosóficas e sociais sobre diversos episódios históricos, inclusive por viés espirituais. É de bom grado lembrar a origem camaronesa do autor, o que o faz ter visões que vão além da tradição acadêmica ocidental. Por exemplo, promove uma reflexão sobre a industrialização da morte, que passa pela guilhotina da revolução francesa – contraditória por humanizar o processo de assassinato estatal, permitindo um ato rápido e indolor, e, ao mesmo tempo, desumanizar, tornando o processo frio e estático – e que se estende ao regime nazista, expressão máxima da escala industrial da necropolítica. Outras conjunturas também são dignas de análises, como o apartheid sul-africano, a relação entre Palestina e Israel, as economias de guerra em torno de recursos naturais em estados africanos, e até mesmo uma reflexão sobre as implicações sociais dos homens-bomba.
A partir dos exemplos, é possível concluir que a soberania de controle dos corpos, ao legimitar ao Estado a violência sobre a população, permeia todos os regimes políticos, das monarquias coloniais às democracias liberais. O socialismo marxista também não escapa à lógica: segundo o autor, uma tentativa de ruptura histórica não-espontânea exigiria necessariamente violência contra os grupos opositores, coibindo um dos expoentes da pluralidade humana. Tal conclusão nos provoca a refletir sobre as possíveis saídas, ou, remetendo ainda mais para a raiz do problema, se é possível imaginar um futuro possível, no qual a existência da humanidade se sobreponha aos interesses que dão base à necropolítica. Observando a conjuntura recente, acredito ser necessário uma alta dose de imaginação política e utopia para pensarmos em tal possibilidade. No entanto, não podemos perder a utopia de vista, sob a pena de sucumbirmos de vez às instituições que enxergam nos grupos sociais mera força de trabalho, não apenas facilmente substituível como, em certos casos, intencionalmente descartável.