maria.e.sousa.7 09/04/2023
O anti-herói perfeito!
Tem spoiler de leve!
Tive reações diferentes conforme fui progredindo na leitura de deuses caídos: Comecei com espanto, me irritei em alguns momentos, mas terminei tirando o chapéu.
Comecei com a sensação de soco no estômago, porque o prólogo já dá um belo spoiler do que você vai encontrar nas páginas seguintes. Soco no estômago, deixa você sem fôlego e é assim que a gente se sente de imediato ao encontrar a primeira personagem, no primeiro parágrafo.
Conforme você vai progredindo na leitura, a sensação de espanto, horror e incredulidade se adensa, numa história muito bem amarrada, que reflete com maestria o sincretismo brasileiro, os estereótipos, as crenças, brincando com incensadas figuras históricas ou populares de forma transgressora (aqui até lembrei um pouco de Men in Black haha), trazendo questionamentos sobre a moralidade duvidosa de muitos figurões que se colocam como ?modelos? ? especialmente as figuras religiosas.
Iconoclasta, não poupa ninguém: tem o pastor dinheirista, o padre pedófilo, a vidente charlatã, o cardeal corrompido pela sede de poder, e muitos outros ? todos exploradores da fé, da ingenuidade e da miséria alheia, quando deveriam ser seta e caminho para o Divino. Perderam-se, confundiram-se com forças arquetípicas maiores do que eles mesmos, que achavam que podiam controlar e assim, tornaram-se apenas possuídos pela sombra daqueles que se pretendem iluminados. Poder, corrupção, luxúria, perversão e muitas doses de todos os pecados capitais... encontram-se de sobra por aqui. Vale destacar: a começar pelo nome ? referência a um ícone famoso da mitologia feiticeira e cristã ? uma das sacadas de gênio de Tennyson foi colocar como protagonista um anti-herói magistral, um Santo Católico boca suja, cheio de defeitos humanos e muita... luxúria! As carola pira! ?
Defintivamente, Gabriel Tennyson tem muita imaginação e um grande talento para a ficção, além do conhecimento das mitologias cristã e judaica, especialmente nas suas partes mais obscuras. Também achei animador uma estória ambientada no Brasil, utilizando lendas urbanas brasileiras, estórias e referências locais, apesar de em alguns momentos Cipriano me lembrar John Constantine ? mas Contantine, mesmo sendo suicida, tinha como maior pecado na vida adulta, o vício do fumo (suicídio a conta-gotas, anyway).
Não é o estilo de livro que normalmente me faria entrar numa livraria para comprar ? já li muito mais desse estilo no passado. Por isso, no início da leitura, fiquei um tanto desconcertada: por que me indicaram esse estilo de leitura, que definitivamente não é o meu? Tão brutal. Tão perturbador. Tão violento! Eu sempre me lembro de Marion Woodman que diz: ?as imagens de que nos alimentamos governam nossas vidas? e não é desse tipo de imagem que quero me alimentar... Porém, conforme se progride na leitura, a narrativa te prende e você só quer chegar ao final, roendo os dedos ? sim, estimula a fissura! Ainda não é o estilo de leitura que eu escolheria voluntariamente ? o terror continua não sendo dos meus estilos favoritos ? porém, admito: o livro é excelente! Contudo, sigo buscando outras imagens para me nutrir.
O novo ?Messias? que surge aparentemente faz referência à juventude gospel/carismática, que parece ter sofrido lavagem cerebral religiosa, e que acha que pode julgar e condenar com severidade implacável os ?pecados? de seus pais ou dos ?infiéis" que não seguem suas crenças, e mesmo julgar a Deus no seu ?excesso? de misericórdia. A eugenia religiosa executada pelo cardeal sai pela culatra ? ele mesmo, questionando a própria fé, acha que pode julgar os desígnios de Deus, acha que faria melhor no seu lugar e fica claro que o problema realmente não é a juventude fanática, mas suas lideranças equivocadas que simplesmente não entenderam a mensagem do Cristo. O Messias jovem e ingênuo não tem noção nem de si mesmo, nem da própria alma e é derrotado não por Cipriano, mas por esse profundo desconhecimento de si e da natureza humana.
Um incômodo. No início, as metáforas que o autor vai criando para descrever cenários, situações e momentos são muito estimulantes, dando aquela sensação de ?Uau!? ? _o pavimento cicatrizou, as ruas sangravam pelos bueiros, prédios empalando o horizonte, luzes cor de urina_... Entretanto, com o tempo isso vai perdendo a graça. Há momentos que julgo que o autor recorre excessivamente a essas figuras de linguagem e fica cansativo, exageradamente dramático. Em certas passagens tais metáforas são perfeitas, em outras, dá uma sensação de lacração, de drama excessivo. Tirando isso, o livro é um excelente exemplar do estilo terror. Recomendo, para quem gosta.
Vale ressaltar: a metáfora melhor de todas é que o resgate da fé na vida e na humanidade se dá não pelas igrejas e líderes religiosos corrompidos, santarrões azedos e moralmente putrefatos, mas pelas ações singelas e honestas de pessoas comuns, de anti-heróis insuspeitos, muitas vezes vivendo à margem das sociedades: aqueles a quem Jesus não só não excluiu de seu convívio, mas chamou para seu banquete!
Spoiler: o final é brutal. O autor não tem compromisso com finais felizes ou apaziguamentos e não poupa suas personagens. Isso deixa a gente num anticlímax de incredulidade, esperando a segunda "temporada" onde a personagem XY surja explicando aquele fim tétrico.
Este é um daqueles livros que daria uma ótima série ou mesmo um ótimo filme!
4,5 de 5