Raquel 31/12/2023Homem no escuro, de Paul AusterAugust Brill, crítico literário aposentado, recupera-se na casa da filha de um acidente de carro em que quase perdeu uma perna. Quando o sono se recusa a dar as caras, Brill permanece na cama e libera a imaginação para tecer histórias que o ajudem a desviar o foco mental de coisas que ele gostaria de esquecer: a morte recente da mulher, o assassinato do namorado da neta no Iraque e a dolorida solidão da única filha, abandonada pelo marido. Entre pensamentos que viajam trazendo lembranças sobre a esposa falecida, a ex-amante, além de detalhes da vida da filha e da neta, surge na mente de August uma história sobre um jovem americano que acorda em uma guerra civil que ele não entende e onde lhe pedem que mate um homem. À medida que a noite avança, adensa-se a trama do insone, ameaçando engolfar seu próprio criador numa delirante vertigem autopunitiva. Tendo sido crítico literário e devotado sua vida aos livros, é compreensível que August mergulhe em histórias como meio de distração. No mais, o personagem é um homem comum, que sente saudades da esposa, tem alguns arrependimentos e alegrias, se preocupa com a filha e com a neta e procura válvulas de escape para coisas que prefere não pensar.
A guerra é um tema que perpassa toda narrativa, como uma espécie de ponto de ligação das duas tramas que se desenvolvem paralelamente. No passado de Brill, ela está nos relatos da família judia da esposa. No presente, a guerra se impõe tanto no seu mundo real, pela viuvez precoce da neta, quando no seu universo fictício, em que os Estados Unidos sucumbiram a uma nova disputa que ameaça a soberania nacional. Há também uma abordagem menos óbvia da guerra, quando Brill relembra momentos de ódio que presenciou durante uma onda de violência racial que atingiu o país, em sua juventude. O narrador recorda que, diferente da família da esposa ou do marido da neta, ele nunca esteve em um campo de batalha, pelo menos não o que comumente se entende por “campo de batalha”. Em um trecho bastante marcante, Brill ressalta que a guerra está onde o ódio está, e não necessariamente onde exércitos uniformizados se enfrenta.
Gostei da história, mas fiquei decepcionada ao mesmo tempo: me recomendaram como uma distopia e eu esperava que a pequena trama criada por Brill fosse realmente uma trama paralela que se ligaria à história do homem na cama de forma mais direta....