Claire Scorzi 02/01/2010
Duas narrativas, duas visões, uma possível fuga
O livro desenvolve duas narrativas: a vida atual do protagonista, um crítico literário idoso que está morando com a filha enquanto se recupera de um acidente, usando o tempo livre para para assistir filmes antigos com a neta; e a história que o próprio protagonista conta para si mesmo durante as horas de insônia e de dores na escuridão: uma ficção futurista, depressiva, sobre uma nova guerra civil ocorrendo nos EUA.
As partes do livro que narram o cotidiano simples de August Brill, o crítico, são um prazer de ler. Já as partes dedicadas à trama inventada por ele a mim soaram chatas, cansativas, apesar da ação e da base dramática.
Debati-me com a leitura, arrastando cada linha quando tinha de ler as divagações ficcionais de Bril, e lendo com delícia e empatia a história vivida por ele.
Só bem avançada a leitura tive um insight, que foi o seguinte:
* A história narrada em 1ª pessoa por Brill, em que conta seu estado insone, recorda o passado, vê filmes com a neta - é a história "feminina" de Auster. Uma narrativa simples que fala de pessoas e suas dores, fala de famílias, erros, perdas, sofrimento, pequenos prazeres, arrependimentos. É uma visão "feminina" de Literatura, pois em geral são as mulheres que se voltam para esses temas - interação familiar, a doença, a vida diária.
* A história inventada por Brill, cheia de visões apocalípticas do futuro, política, espionagem, traição, assassinato, ação, conspirações - é a história "masculina" de Auster. O tipo de romance que em geral os homens escrevem, e que gostam de ler.
Por que August Brill inventa tal história? Porque, mergulhado numa história "feminina", emotiva, familiar, ele não sabe lidar com isso. Criar a outra história é assim mais do que fuga da insônia: é uma fuga de uma realidade emocional com a qual ele, como homem, não consegue lidar; sente dificuldade em lidar.
Se minha idéia está correta, foi uma maneira criativa de entrelaçar as duas histórias. Mas posso ter visto demais. E, se acertei, gostaria que Auster tivesse conseguido tornar sua história "masculina" mais palatável...