Lucio 20/08/2021
Família ou Barbárie!
INTRODUÇÃO
Este é um livro, como já se espera pelo título, em defesa do matrimônio. Mais do que isso, um livro que busca definir o que é o matrimônio e, só então, definir o que é o divórcio. E ao se defender o matrimônio, inevitavelmente se defende a família. E a defesa da família está intimamente ligada à defesa da liberdade, da sociedade e da civilização. Eis a síntese do que temos nessa coletânea de artigos que logo foram acrescidas de alguns outros dentro deste escopo para compor uma grande obra de filosofia moral.
RESUMO
O cerne do argumento de Chesterton é bastante conservador - no sentido filosófico do termo. Para o autor, os defensores do divórcio querem revolucionar algo que nem mesmo entendem e, portanto, não podem prever as consequências, tornando a proposta altamente imprudente. Com efeito, é preciso, pois, antes de se buscar reformar qualquer coisa, entender a coisa, é preciso conhecer a 'forma'. E para tal, o autor defende o casamento como essencialmente um voto. Um voto é uma obrigação que fazemos a nós mesmos, um compromisso de lealdade. Chesterton nota como esse valor foi amplamente defendido no medievo e que foi substituído pelo contrato, sem promover, com isso, alguma melhora. Um voto de lealdade ao casamento é semelhante a um voto de lealdade à bandeira - o que faz com que, obviamente, seja absurdo tentar justificar a deserção quando as coisas estão ruins. Mas, enquanto as pessoas entendem o raciocínio quando diz respeito ao patriotismo, parecem ignorar no que diz respeito ao casamento - que é um patriotismo muito mais respeitável. É por isso que, mesmo reconhecendo as grandes dificuldades que podem existir num casamento, vale dar a vida por essa bandeira e tentar, a todo custo, mantê-la.
A propósito, o filósofo defende a família como um pequeno-Estado. É a única instituição que pode enfrentar o Estado e que se forma naturalmente e que renova sua própria existência. É o último bastião de defesa contra o totalitarismo, pois ela reivindica uma lealdade última que não à pátria, anterior a esta e até mesmo que fundamenta esta. Por isso, as pretensões de domínio sobre o indivíduo são frustradas quando há esse núcleo de fidelidade e lealdade à qual ele pertence. A família e o lar formam a pequena província onde o indivíduo é rei. Quebrar tal reinado é um prato cheio a toda pretensão totalitária.
Os apologistas do divórcio, amiúde, fundamentam sua perspectiva em torno de uma filosofia do amor-livre. Chesterton procura confrontar tal noção com a realidade. Primeiro, observa que há um romantismo tão ingênuo quanto aquele do qual acusam os defensores do matrimônio, i. e., eles parecem entender que quando as pessoas se divorciam surge um 'felizes para sempre'. Na verdade, é bastante comum que uma das partes não deseje o divórcio e permaneça com o coração partido. Não é raro que nenhuma das partes alcance felicidade. Além disso, a filosofia do amor-livre coloca o indivíduo numa situação do que Bauman chamaria de 'amor-líquido'. Afinal, é preciso experimentar, ser feliz e buscar o que nos completa. A variedade de possibilidades quando não há mais qualquer compromisso fixo se torna altamente sedutora. Qualquer compromisso sólido torna-se uma negação do amor que deve escoar e buscar sempre uma nova paixão. Aliás, os próprios casamentos não mais são buscados com seriedade e responsabilidade, pois é muito fácil desfazer-se deles. Assim, a própria família já não é mais um núcleo seguro de outrora e a própria liberdade civil que ela proporciona encontra-se ameaçada. A filosofia do amor-livre, para além de sua própria loucura idolátrica, também é responsável por este grande desafio e ameaça política.
O que querem os proponentes do divórcio não é apenas uma negação do matrimônio, mas que os divorciados tenham o respeito e dignidade dos casados. Não ocorre a tais apologistas que o respeito, estima e consideração pela instituição familiar vem justamente de sua solidez, do voto de lealdade e do compromisso até o fim. Não há como receberem o mesmo respeito sem ter os mesmos atributos que conferem respeito. E perdem o respeito justamente por negar tais atributos.
Chesterton também observa que muitos arautos do divórcio buscam casos desastrosos de casamento para validar a rejeição de modo geral. Então, o autor, com grande sagacidade, observa que é ainda mais plausível apresentar os casos em que se abusaria de tal liberdade para o divórcio. Com efeito, muitos homens buscariam se aproveitar ao máximo da situação. Muitos se casariam já concebendo o tempo em que suportariam algum contra-tempo, ou mesmo buscariam outra mulher assim que enjoassem daquela. Qualquer contra-tempo faria um cafajeste sair de um casamento. E muitos cafajestes, acrescentamos, se manifestariam como tais. Assim, qualquer perspectiva de lealdade e compromisso se tornaria algo bastante raro rapidamente.
O autor também vincula a permanência do casamento ao grande empreendimento familiar: a criação de outro ser humano. Aqui, vemos Chesterton repetir os clássicos argumentos do 'O Que Há de Errado com o Mundo' no que diz respeito ao papel da mulher na educação dos filhos. É por isso que, na segunda parte do livro, teremos artigos confrontando a suposta emancipação da mulher para ser serva fora e realizar algo muito menos grandioso do que a formação responsável do indivíduo. Este é o vínculo, aliás, do tema central do livro com algumas das partes em que ele resolve versar sobre educação - incluindo aí um brilhante artigo confrontando a pretensa neutralidade na educação.
CRÍTICAS
Este seria um livro sensacional se Chesterton não tivesse comprado tantos mitos progressistas. O autor revela uma grande ignorância no que diz respeito ao capitalismo enquanto sistema econômico. Ele não percebe que é justamente numa economia de livre mercado que os salários podem aumentar para que o trabalhador sustente sua família. Não reconhece que fora desse sistema, não raro, não havia, para muitos, nem mesmo condições de sustentar os filhos e que muitos morriam de inanição mesmo na Inglaterra. E não parece notar que é justamente nesse sistema que surgem as condições materiais para que uma mulher não precise abandonar o filho no lar e ir atrás de trabalho para sustentar a família, somando seus recursos ao do marido.
Mas, pior do que isso, é Chesterton, tal como tantos progressistas, não conseguirem distinguir o capitalismo, enquanto sistema econômico, do liberalismo enquanto filosofia de vida. Conservadores são capitalistas sem serem egoístas, contrários à família, individualistas e etc. Com efeito, o filósofo comete o erro elementar dos progressistas de julgarem que esse sistema econômico é o responsável pela maioria dos vícios humanos que lhes são inerentes.
Para piorar, Chesterton comete o erro oposto ao que ele denuncia, alhures, no socialismo - a saber, o de, no final das contas, considerar o pobre como desprovido de virtudes. O autor, não raro, parece considerar que todos os ricos, ou sua maioria, são gananciosos egoístas desprovidos de quaisquer virtudes ou valores. Além da generalização ingênua, esquece-se que pobres e ricos têm suas próprias tentações ao vício e suas próprias condições de desenvolverem virtudes. No afã de criticar o que hoje chamaríamos de 'metacapitalistas' (progressistas burocratas que usam o Estado para minar a concorrência e os obstáculos ao seu império), acaba trocando gato por lebre e condena os ricos, não o amor ao dinheiro, bem como o capitalismo, não os capitalistas maus que se valem do sistema para perpetrar suas vilanias.
Chesterton chega mesmo ao absurdo de considerar que os socialistas não tinham a intenção clara e determinada de, na prática, negarem a família. É verdade que ainda não havia surgido os progressismos identitários que conhecemos em nossos dias, mas já havia o bastante de feministas proclamando as maiores barbaridades e conseguindo cada vez mais espaço na sociedade. Já havia os próprios progressistas defensores do divórcio e do amor-livre - coisas que nenhum conservador defenderia - e as claras manifestações de Marx e Engels a esse respeito. É ingênuo e equivocado o autor acreditar que o capitalismo e as indústrias eram os reais vilões, e que todo rico e capitalista tinha por propósito dividir a família para poderem se assenhorar dos indivíduos. Isso não é inerente ao capitalismo em si e nem nos parece ter feito alguma vez parte das pretensões, em geral, das pessoas, dos empresários - sejam eles grandes ou pequenos. Mas declaradamente fez e faz parte da agenda progressista.
Todos esses equívocos são bastante comprometedores. O leitor maduro terá que pacientemente ignorá-los para absorver o que há de melhor na obra. É preciso rejeitar tais lamentáveis erros e focar a atenção em todas as coisas boas que o autor nos proporciona enquanto crítico cultural.
Ainda poderíamos fazer uma última crítica bastante pontual. Chesterton, aqui, diferente do 'Tremendas Trivialidades', é mais explícito no que diz respeito ao cristianismo. Observa, bem ao espírito tomista, que a fé já defendia desde sempre o que a razão pôde concluir a respeito de tão sagrada instituição. Mas ainda assim, apesar das observações declaradas de que não pretendia apontar para os aspectos teológicos explícitos da questão, faltou observar o papel imprescindível da fé para a lealdade e, no último capítulo, para a própria felicidade. Apontar a questão já bastaria. No entanto, o autor poderia se esquivar dizendo que já havia apontando essa questão - e de modo magistral - no 'Ortodoxia'. Seria uma ótima saída.
REFERENCIAL TEÓRICO
Chesterton, como é de costume, faz referências à literatura. Embora, aqui, ocorra em menor proporção, ainda veremos aqui e acolá Dickens, Stowe, W. S. Gilbert... e etc. O autor mencionará nominalmente Shaw, seu eterno adversário. Mas tem em vista os socialistas fabaianos em geral em suas críticas. Godwin e sua esposa, Shelley, aparecem num capítulo específico, junto a Malthus. Ibsen, Dante, Shakespeare, Tomás de Aquino e Doyle, enquanto clássicos, também têm uma ou outra referência. Aqui e acolá surgirão alguns autores menos conhecidos, como Somerset Maugham. No mais, a maioria dos seus opositores ou mesmo suas referências construtivas não são nomeadas. Chesterton fala dos defensores do divórcio de sua época, mas somente E. S. P. Haynes é mencionado explicitamente. O autor também fala de progressistas e reformistas sociais, mas sem nomes. Os leitores da época certamente tinham melhores condições de nomeá-los. Em geral, podemos dizer que o autor enfrentava progressistas e feministas da época e tinha por referência os clássicos da tradição ocidental.
RECOMENDAÇÃO
Como já estamos cansados de observar, Chesterton é um autor fácil de se ler, por um lado, e muito difícil, por outro. Por um lado, há uma escrita muito fluida e prazerosa. O autor é um frasista de primeira e tem um estilo de prosa bastante cativante. Mas tais aspectos literários podem acabar obliterando a grandiosidade filosófica de seus argumentos. Por isso, o livro é mais bem aproveitado pelo leitor atento e experiente, que consegue captar as nuances argumentativas em meio ao fluxo rápido e ilustrado de pensamentos deste grande filósofo. Quem estiver ciente dos cânones básicos do conservadorismo encontrará ainda maior vantagem na leitura, percebendo-a coadunar em muitos aspectos com tal perspectiva de mundo. Quanto à temática em si, é crucial para todos, pois, em geral, todos participamos de uma família, seja como filhos, seja como cônjuge, seja como pais. Mas ao pesquisador em filosofia política e filosofia moral, particularmente, há um especial interesse. E particularmente os interessados em assuntos como o feminismo e o liberalismo moral (comum a progressistas e liberais) poderão tirar muito proveito desta grandiosa leitura.