Pandora 08/08/2020Frymeta Idesa Frenkel, conhecida como Françoise Frenkel, era uma polonesa de origem judaica que estudara Letras na Sorbonne, na França. Em 1921 abriu com o marido, Simon Raichenstein, russo também de origem judaica, a primeira livraria francesa em Berlim, na Alemanha: La Maison du Livre.
Em 1933, Simon conseguiu um passaporte Nansen e foi para Paris. Françoise tocou sozinha a livraria até 1939, quando, com a iminência da guerra, teve que largar tudo e ir para Paris num dos últimos trens autorizados a deixar o país com estrangeiros de origem judaica.
Este livro, editado pela primeira vez em 1945 na Suíça - e praticamente esquecido até ser resgatado num bazar beneficente na França 35 anos após a morte da autora -, é um relato de seus anos de fuga durante a 2ª Guerra Mundial.
Há pelo menos duas curiosidades sobre esta narrativa: a primeira que Simon Raichenstein, o marido, que viria a ser capturado durante as prisões em massa em Paris e morreu em 1942 em Auschwitz-Birkenau, não é citado em nenhum momento. É como se não tivesse existido. A segunda que, mesmo com todas as dificuldades da guerra, mudando constantemente, Françoise nunca aparentou ficar sem dinheiro.
Esta narrativa não trata só dos horrores da guerra, mas da imensa rede de solidariedade que se instalou na França após a ocupação nazista. Além dos Marius, que foram o porto seguro de Françoise em Nice, a dona da última residência em que a autora viveu antes de ir para a Suíça, ?perdeu? seus documentos para que Françoise passasse por cidadã francesa. Vários foram os que arriscaram suas vidas para proteger os perseguidos.
Foi um dos livros mais angustiantes que já li. No início, e durante uma boa parte da leitura, eu achava que Françoise era muito privilegiada e que ela passaria quase que incólume pela guerra. Mas conforme o cerco alemão aumentava com a ajuda da polícia francesa e ela tinha que se deslocar cada vez mais frequentemente, por várias vezes fiquei sem ar; parecia que era eu quem estava fugindo, me escondendo, temendo estar dormindo e de repente a porta se abrir e eu ser levada.
Não se sabe quase nada sobre a vida da autora após a publicação deste livro. Mas como escreveu Patrick Modiano, que fez o prefácio da nova edição: ?Prefiro não conhecer o rosto de Françoise Frenkel, nem as peripécias de sua vida após a guerra, nem a data de sua morte. Assim, seu livro será sempre para mim como a carta de uma desconhecida, esquecida no correio há uma eternidade e que você recebe por engano, embora, talvez, ela lhe fosse de fato destinada.?
Passagens do livro:
?Entre os muitos corajosos que levantaram a voz estiveram o pastor Niemöller, o padre Mayer, o monsenhor von Gallen, bispo de Münster, o cardeal Faulhaber, de Munique. Quase todos desapareceram ou, como os judeus, encheram os campos de concentração. A lembrança deles não pode, por certo, ser apagada.?
?Completamente imbuído de um desejo ardente de paz, o povo francês aguardava. A famosa frase ?ano passado também foi assim, parecia que o pior ia acontecer e tudo se resolveu? circulava de boca em boca, como se fosse um refrão de uma canção popular.?
?Religiosas, enfermeiras da Cruz Vermelha e moradores das cidadezinhas vinham distribuir alimentos, bebidas, jornais, palavras de encorajamento. E o trem retomava lentamente o movimento. (...) A solidariedade se manifestava entre aqueles viajantes de futuro incerto.?
?O cartão de abastecimento não indicava, de fato, que o cliente tinha sido atendido. (...) Os fura-filas aproveitavam para fazer compras com cartões que pegavam emprestados de várias famílias. (...) Mais de uma vez, voltei para casa sem nada nas mãos, como tantos outros.?
?Um hóspede septuagenário tinha conseguido passar com dificuldade pela linha de demarcação. Ele viajara em companhia do filho, mas os dois se separaram ao chegar à zona livre. Quando o velho soube que o filho havia sido capturado e enviado ao campo de concentração de Drancy, caiu num profundo abatimento. Os vizinhos do hotel combinaram distraí-lo: uns o levavam à alameda, outros o visitavam para reconfortá-lo. Mas o senhor Samuel Mendelsohn soube enganar o generoso grupo que o cercava e, uma noite, se enforcou na janela do quarto.?
?Por um segundo, tive a tentação de correr para o meio dos grupos e gritar: ?Me levem, sou um deles!? Um sentimento de regozijo intenso me invadiu quando eu tive esse pensamento de solidariedade e imolação. Mas a lógica fria tomou a dianteira. (...) O instinto de preservação me havia dominado. A amargura dessa verdade me pesa hoje e me pesará até o fim dos meus dias.?
?Seria possível escrever um livro inteiro sobre a coragem e generosidade dessas famílias que, arriscando as próprias vidas, ajudaram os fugitivos em todas as províncias e até mesmo na França ocupada.?
?É DEVER dos sobreviventes prestar em testemunho para que os mortos não sejam esquecidos nem ignorados seu sacrifícios obscuros. (...) Dedico este livro aos HOMENS DE BOA VONTADE que generosamente e com infatigável coragem opuseram sua vontade à violência e resistiram até o fim.?