Dhiego Morais 10/07/2018HQ nacional de qualidade2018 está sendo um grande ano para o universo dos quadrinhos aqui nas terras tupiniquins. Com lançamentos europeus, consagrados internacionalmente, pela editora Mythos nos selos Gold e Prime Edition, além, dos selos especializados das editoras DarkSide, Geektopia, Mino, Nemo, Avec, Pipoca & Nanquim, Panini e tantas outras, que se arriscam e enxertam no mercado uma gama diversificada de obras e autores muito interessantes. É aproveitando essa maré que a editora Draco trilha um caminho ousado, mas não menos necessário e gratificante, dando a oportunidade a grandes quadrinistas nacionais de apresentarem o seu trabalho diferenciado, com belos quadrinhos que dão mais cor e vivacidade a um catálogo nacional e extremamente plural ? para não citar também os romances de literatura fantástica.
Sendo assim, a editora Draco lançou um quadrinho que consegue unir de maneira surpreendente tecnologia com elementos puramente regionalistas, puramente brasileiros, construindo talvez, um dos primeiros cyberpunks nordestinos do universo das HQs. A fusão inesperada entre cangaço e tecnologia futurista, a princípio estranha aos ouvidos, é realizada de maneira tão exemplar que fica difícil entender como essa mistura nunca chegou a nossa estante antes.
?Mesmo a gente, que vive de matar os outros, precisa de alguém que viva por nós.?
Cangaço Overdrive é uma história em quadrinhos que conta com o roteiro de Zé Wellington ? autor de outras HQs também pela editora Draco, tais como Quem matou João Ninguém (2014) e Steampunk Ladies: Vingança a Vapor (2015) ?, vencedor de um troféu HQMIX em 2015, e com layouts de Walter Geovani ? conhecido por alguns de seus trabalhos pela Dynamite, como Red Sonja, além de outras contribuições pelas renomadas Vertigo e Titan Comics. O quadrinho ainda conta com: desenhos de Luiz Carlos B. Freitas e Rob Lean; colorização de Dika Araújo (Quimera), Mariane Gusmão e Tiago Barsa (The few and the cursed); e apoio da Secretaria Estadual da Cultura do Governo do Ceará.
Em Cangaço Overdrive, o leitor é convidado a conhecer um Ceará futurista: aqui a realidade é completamente diferente, extremamente tecnológica, mas não impossível. Elementos já conhecidos da população brasileira, tais como a seca, a forma de se expressar verbalmente e até mesmo a violência dos morros se mesclam ao novo ambiente, induzindo a um ar de similaridade que amplia a sensação benéfica de receptividade à obra. Apesar de seu roteiro não muito longo, o avançar das páginas promove um estreitamento do público leitor com o quadrinho.
Logo nas páginas iniciais presencia-se a tentativa de invasão, pela polícia, ao Morro do Preá, com o objetivo de apreender e recuperar certa carga misteriosa. É bastante interessante notar a relação entre a comunidade, que atravessa uma seca que já dura anos, esquecida pelo governo de um país que se divide entre um norte árido e abandonado e um sul tecnológico e rico.
As personagens criadas por Zé Wellington são um show à parte. Aproveitando-se da miscigenação e da pluralidade cultural brasileira, o autor insere em Cangaço Overdrive um elenco coeso e agradável, com mulheres muito expressivas, que não ficam marginalizadas, mas que desempenham uma série de transformações na história do Morro do Preá e do Cangaceiro Cotiara.
Talvez o leitor iniciante tropece nos início da aventura devido ao regionalismo empregado, que se vale de expressões da linguagem popular nordestina constantemente. Entretanto, a familiarização logo surge e a leitura prossegue com mais fluidez. É válido citar ainda que essa valorização cultural, embora não seja tão frequente na literatura nacional, que muitas vezes fica refém do eixo SP-RJ, é estritamente necessária para não apenas polarizar, estimular novas produções como essa, mas também de modo a inserir no mercado uma variedade, uma nova visão de um Brasil rico culturalmente, com uma série de regionalismos próprios e que merecem o seu espaço no universo dos quadrinhos e, em adição, dos romances.
Cangaço Overdrive se aproveita, com bastante ousadia, do cordel para narrar a sua história. Dessa maneira, a história da peleja do icônico cangaceiro Cotiara e do indesejável coronel Avelino alcança um nível de criação quadrinista ímpar. Ao unir aspectos futurísticos a elementos nacionais nordestinos, inovando a forma de contação de histórias e ainda se mantendo contemporâneo, valendo-se de críticas sociais, sem censura, e promovendo o protagonismo às camadas esquecidas da sociedade, o quadrinho entrega em síntese, um trabalho que impressiona até o leitor mais experiente.
?Pois dizia Patativa
num cordel deveras lindo
?A covardia é muito grande
mas ninguém tá desistindo
Morre cem de quando em quando
Mil vai substituindo?
O roteiro não se priva da violência verbal e física, quando ela é necessária à história, enquadrada por uma série de ilustrações que valorizam as personagens. Em alguns momentos me recordaram o estilo do traço de quadrinhos como The Wicked + The Divine, que não chegam a ser complexos demais, mas que agradam a maioria dos leitores.
Cangaço Overdrive é a prova de que um quadrinho nacional pode e consegue mesclar de maneira extremamente satisfatória elementos regionalistas, à tecnologia, produzindo um subgênero de cyberpunk puramente brasileiro. Aqui, características futuristas, a seca selvagem, uma comunidade unida e marginalizada, a violência contra a população e o descaso governamental se misturam para recriar e reanimar os protagonistas de um duelo que nunca teve fim de adequado. Dois inimigos de um século passado retornam a um Ceará transformado pela ciência, para finalmente se vingarem em um final digno de cena de faroeste. De sua janela fique atento e observe o sertão dar lugar a uma arena sangrenta.