Gramatura Alta 24/06/2018
http://www.gettub.com.br/2018/06/correio-para-mulheres.html
CARL
Eu solicitei CORREIO PARA MULHERES à editora quando ele foi lançado, mês passado, se não me engano, porque sou fã de Clarice Lispector. Não apenas da jornalista e autora, mas também pela sua história de vida, pela sua determinação, por sua coragem. Em 1959, ela se separou do marido, um diplomata, por causa das constantes crises de ciúme dele, das viagens e da necessidade de manter uma residência fixa para cuidar do filho esquizofrênico. Nessa época, ela precisava de dinheiro, por isso aceitou escrever os textos que estão neste livro. Quando comecei a ler, não compreendi o que estava lendo. Apesar da qualidade da narrativa, do tom levemente jocoso, eu simplesmente não conseguia enxergar Clarice Lispector. Por quê? Bem, eu pensei que, por ser homem, não deveria ser eu a explicar. Ainda mais com a constante militância de sexistas que existe hoje em dia na Internet. Iam cair matando em cima do que eu iria escrever. Então, desisti da leitura e mandei o livro para a Sara. O resultado é a resenha abaixo. Leiam. Depois, no fim, eu continuo com meu raciocínio.
SARA
Clarice Lispector sempre foi muito reconhecida por suas obras mais famosas, como A HORA DA ESTRELA e A PAIXÃO SEGUNO G.H., mas o que poucos sabem é que ela também escrevia colunas femininas para jornais, nas décadas de 1950 e 1960. Contrariando sua aparência sempre séria, falava sobre o universo feminino de maneira divertida, dando dicas e conselhos às suas leitoras. Aqueles que estão acostumados com seus textos consagrados, verão um lado seu diferente, que se preocupa com estética, casa, família e amigos.
A autora trabalhava como ghostwriter para jornais, fazendo uso de nomes como Tereza Quadros, Helen Palmer e Ilka Soares para assinar seus trabalhos circunstanciais de sobrevivência. Publicava sob seu verdadeiro nome somente suas obras literárias reais. CORREIO PARA MULHERES foi o resultado da união entre as colunas "Correio Feminino" e "Só Para Mulheres", contendo textos de aconselhamento feminino, onde a autora dá dicas de moda, cabelo, maquiagem, perfumes, comportamento, receitas culinárias, dicas para cuidar da casa, educação dos filhos, como agradar o marido...
Apesar de gostar muito das obras da autora, não a reconheci nesses textos. Aqui, ela prega muito sobre a importância da mulher estar sempre bela e arrumada, conservando sua feminilidade e delicadeza; afirma que todas se arrumam com o único objetivo de conquistar algum homem, pois considera-os essenciais para sermos completas e felizes; da dicas de comportamentos, enfatizando o quanto são importantes para obtermos respeito e admiração, além de não sermos mal educadas; como a mulher deve se preocupar com o bem-estar alheio o tempo todo, agradando o marido e os amigos sempre; dentre outros "conselhos" puramente machistas que me incomodaram ao extremo.
"Os tempos modernos trouxeram a emancipação da mulher em quase todos os campos. Eis um grande bem. No entanto, muita confusão se faz em torno disto e o que se vê é que muitas representantes do sexo feminino entendem que ser emancipada e ter personalidade marcante é imitar os homens em todas as suas qualidades e seus defeitos. A agressividade, o hábito de tomar atitudes pouco distintas em público e muitas outras coisas vêm prejudicando a beleza da mulher e tirando-lhe o predicado que mais agrada aos homens: sua feminilidade. A faculdade de ser diferente dos homens em atitudes, palavras, mentalidade." (Texto: Qualidades para tornar a mulher mais sedutora).
É claro que devemos considerar a época em que a obra foi escrita, principalmente o contexto social das décadas de 1950 e 1960; porém, atualmente, a leitura pode ser ultrajante. Em algumas partes, Clarice evidencia a força da mulher e sua sabedoria, o que é muito bacana; mas em contrapartida, inferioriza o sexo feminino em vários trechos, propagando ideais machistas que "obrigam" as mulheres a agirem de um jeito ou de outro. Isso me incomodou muito! Confesso que fiquei decepcionada com CORREIO PARA MULHERES, mas não deixo de admirar outros trabalhos da escritora.
"Uma coisa é certa: nós, mulheres, desejamos e temos o dever de agradar aos homens. Ou, pelo menos, ao homem que amamos, não é verdade? Se um homem elogia um penteado nosso, um vestido, um tom de esmalte, é porque esse detalhe realmente nos embelezou, pois, de uma coisa podemos ter certeza: nesse assunto, o homem é sincero, não há despeito nem veneno em elogio seu. Assim sendo, a preferência masculina deve ser levada em consideração sempre que nos vestirmos e enfeitarmos. A título de curiosidade, e também de orientação para algumas inexperientes, dou aqui uma pequena lista de coisas, que muitas de nós usamos ou fazemos, e que um inquérito revelou ser aquilo que os homens detestam: vestido muito justo; pintura excessiva, principalmente nos olhos; modas sofisticadas e complicadas; saltos muito altos; batom exagerado desenhando nova boca e exótica; moça desembaraçada demais; mulher sabichona. (...) Chamar a atenção não é a finalidade de uma mulher elegante e inteligente. Mas sim ser atraente e agradar aos homens. Estou certa?" (Texto: O que os homens não gostam).
De acordo com o próprio livro, "CORREIO PARA MULHERES não apresenta apenas dicas para "mulherzinhas" ou curiosidades "históricas", como datados conselhos para livrar a casa de ratos e baratas; oferece também, aos leitores, pérolas ocultas do mais puro estilo de Clarice Lispector, que surgem aqui e ali de modo inesperado, como matreiras piscadelas da enigmática musa do Leme". Particularmente, não considero o livro ruim, apenas possui um contexto social bem diferente do atual. Pode ser uma boa opção de leitura para os fãs de Clarice Lispector que desejam passar o tempo com uma leitura leve e conhecer outras facetas da autora.
CARL
Como a Sara disse, é necessário levar em consideração a época em que os textos foram escritos. Afinal, nessa mesma época, foram escritas obras consagradas, por outros autores, que tinham seus textos carregados de racismo e preconceito. Entretanto, o que me chocou não foi o que ela escreveu, mas sim ter sido ela a escrever. Quem conhece a vida de Clarice Lispector, e suas obras, claro, sabe que ela foi uma mulher que ultrapassou os limites que eram impostos ao sexo feminino na época. Por isso, pensei muito no que poderia levar alguém, como ela, a escrever textos tão carregados de machismo, de submissão. Não há como saber, pelo menos para quem não a conheceu pessoalmente. Mas eu, como fã, prefiro pensar que foi necessidade. Ela havia se separado, precisava de dinheiro e o que lhe ofereceram, foi escrever para colunas femininas. Se ela colocasse ideias liberais, revolucionárias, de empoderamento feminino, não passaria da primeira publicação. Então, ela escreveu da forma que a sociedade era acostumada a viver, escreveu o que a sociedade queria ler. Se foi isso realmente, alguém pode julgá-la? Eu acho que não. Ou melhor, tenho certeza de que não.
Depois que a Sara entregou a resenha, eu pesquisei na Internet por matérias sobre o livro. Para meu espanto, as únicas informações que encontrei foram sobre a qualidade da narrativa da autora, sua incrível capacidade na elaboração de ideias, na formação de frases, na arte da escrita. Não sei se as pessoas têm medo de discutir o teor machista dos textos por ser a Clarice quem os escreveu. Independentemente de quem ela foi, e principalmente pela época em que vivemos, quando existe uma constante luta entre a igualdade feminina e a inconformidade masculina, é muito importante destacar como era absurdo a posição submissa a que a mulher na época era obrigada a viver. O que podemos tirar desses textos, é o aprendizado de como era o contexto de uma época em que a mulher era um mero objeto de enfeite e de satisfação. E sentir vergonha.
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