Paulo 01/02/2019
QUAL A HISTÓRIA DE SHANGRI-LÁ?
Centenas de anos no futuro, o planeta Terra foi devastado e tornou-se inabitável, e a humanidade vive confinada em uma estação espacial governada pela mega-corporação Tianzhu. Essa empresa criou um ambiente que consegue suprir todas as necessidades de seus moradores, incentivando o consumo desenfreado e doentio. O objetivo de vida dos habitantes da estação é trabalhar, trabalhar para consumir os produtos da Tianzhu, e todos parecem satisfeitos com esta “sociedade perfeita”.
A HQ é protagonizada por dois irmãos: Scott e Virgílio. Scott é o nosso cara. Ele trabalha para a Tianzhu, como todo mundo trabalha, e é totalmente convencido da qualidade de vida que a estação proporciona. Scott é a representação do habitante ordinário, que não se questiona sobre nada: acorda, trabalha, consome, dorme, acorda, trabalha, consome, dorme.
“Ninguém me obriga a comprar, pô! Não é como se apontassem uma arma pra cabeça dele. Nunca fomos tão livres. Estamos no auge da civilização! O que mais ele quer?”
“Você trabalha hoje? Todos os dias, meu caro! Temos que pensar no desenvolvimento!”
Já Virgílio é mais subversivo, constantemente se questionando sobre o lugar dele no mundo e sobre o estilo de vida consumista e controlador pregado pela Tianzhu. Virgílio e seu amigos fazem parte de uma célula revolucionária que possui um olhar diferente sobre a Thianzhu e querem tomar o controle de suas vidas.
“Trabalhamos para a Tianzhu que, em troca, nos paga com créditos Tianzu, que usamos para comprar produtos Tianzu, o que permite a eles no pagar. O círculo está fechado! E se não tivermos dinheiro suficiente, é só pedir um empréstimo para a Tianzhu para consumir. Nada aí te incomoda?”
A história de Shangri-lá começa quando Scott é enviado pela Tianzhu para investigar explosões misteriosas em certas estações de laboratório que estão estudando o processo de criação da vida "do zero". Virgílio e seus amigos desconfiam da Tianzhu e o movimento rebelde começa a ganhar força. Extremamente resistente de início, Scott acaba sendo engolido por esse movimento, e irá até o fim para descobrir o que está acontecendo de estranho dentro da estação.
SHANGRI-LÁ VALE O INVESTIMENTO?
Shangri-lá foi um dos lançamentos mais comentados de 2018. Como toda boa ficção científica, Shangri-lá utiliza o futuro para tratar de temas contemporâneos, e um de seus maiores méritos é ser uma obra sobre a qual vale a pena conversar. É impressionante a quantidade de temas que são abordados: capitalismo, consumismo desenfreado, exploração do trabalho, liberdade individual, religião, discriminação e intolerância, racismo, movimentos sociais, meio ambiente e malminorias, alterações genéticas, dependência tecnológica, monopólio, ética na ciênca, meio ambiente e maltrato aos animais, radicalismo, felicidade, dentre outros. E o mais impressionante é que nenhum deles é abordado de forma rasa; todos possuem a devida importância e são trabalhados com certa profundidade: há diversas, ideias, conceitos, camadas e referências (como uma brilhante referência a virais de gatinhos). Mathieu Bablet consegue encaixar tudo no roteiro de uma maneira que narrativamente funciona: na medida que vamos lendo, os temas vão sendo apresentados naturalmente. Mesmo com muita coisa sendo abordada ao mesmo tempo, tudo tem o seu peso e a sua importância para a história: alguns momentos de forma sutil, e em outros, o autor nos dá um soco no estômago. Mathieu Bablet não nos conta uma história pela história, e todo o futuro apresentado é usado para criticar o nosso modo de vida, E o final, convenhamos, é de explodir cabeças.
Narrativamente falando, há muitos diálogos, e o roteiro é muito denso, político e há numerosas referências cinematográficas e literárias. Portanto, se você não curte esse tipo de pegada, vai encontrar dificuldades em manter a leitura. Tenha em mente que é uma obra que você precisa estar no “mood” para tirar total proveito da leitura, principalmente porque você irá precisar lê-la mais de uma vez para extrair tudo que ela tem a oferecer (durante a minha primeira leitura, foquei muito na narrativa principal, e perdi muito do conteúdo da obra. Até mesmo fiquei com vontade de parar e ler outras coisas).
E tudo isso lindamente desenhado. Artisticamente falando, essa HQ é um absurdo! Os cenários e ambientes são profundamente realistas e a arte carrega muita informação e detalhes. Curiosamente, os seres humanos são estilizados, destoando no resto do ambiente, o que dá ao traço de Mathieu um toque único. Belíssimo.
Enfim, por tudo isso, Shangri-lá é uma das melhores obras de ficção científca que já tive contato e o melhor quadrinho do ano. Se você gosta deste tipo de história, e de questionar nossa sociedade e nosso modo de vida, é leitura obrigatória.