Autoengano

Autoengano Eduardo Giannetti
Eduardo Giannetti




Resenhas - Auto-engano


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Marlo R. R. López 26/04/2021

A escrita de Eduardo Giannetti é clara e envolvente, talento que eu já havia constatado no seu ótimo 'Felicidade' (2002). Aqui, o autor se propõe a investigar ("por conta própria", como ele mesmo enfatiza no prefácio, um salvo-conduto que vem a calhar) um conceito aparentemente paradoxal no estudo da psicologia humana: o auto-engano, ou a ideia de que alguém, ou algum grupo, pode acreditar em uma coisa mesmo sabendo que essa coisa não corresponde à realidade.

A excelente introdução me induziu a acreditar que o tema seria tratado como deve: como fenômeno complexo em que estão envolvidas diversas variáveis de diferentes níveis de determinação do comportamento humano, sejam elas biológicas (filogenéticas), ontogenéticas (da vida de cada pessoa em particular) e culturais (das crenças e dos valores sociais que aprendemos a cultivar com os outros). Na introdução, Giannetti esclarece que o que chamamos de "engano" está presente não apenas na vida humana, mas na própria natureza, como aspecto central da luta pela sobrevivência e da reprodução das espécies. Obviamente, o ser humano é um ser social, porque capaz de linguagem, e isso adicionaria elementos novos ao problema do engano inter e intrapessoal. Até aqui, portanto, um olhar tão original quanto complexo sobre o tema. De quebra, imaginei, a reflexão sobre os processos concernentes ao auto-engano seria regada à boa atitude filosófica de que o autor é capaz.

Muito cedo, porém, o livro começa a patinar. E patina até cair. Dois pecados capitais nos argumentos de Giannetti ficam logo evidentes para quem não é leigo no assunto: tratar subjetividade como sinônimo de mente (ou, o que é pior, de "vida interior psíquica" apartada do corpo) e confundir a ciência e o saber científico com os seus instrumentos tecnológicos. São dois erros fundamentais porque, infelizmente, o autor os repete à exaustão, o que leva ao abalo de toda a estrutura argumentativa do livro.

Se tivesse recorrido a leituras de psicologia comportamental enquanto escrevia, ou mesmo da psicogenética de Lev Vygotsky, Giannetti descobriria que é possível falar de subjetividade - do que nos torna sujeitos únicos dotados de história pessoal - como tudo aquilo que deriva de nossas experiências diretas ou indiretas com o ambiente ao nosso redor, a partir do que aprendemos a nos relacionar com o mundo, seja ele natural ou social, constituindo o que somos no momento presente. Subjetividade, por assim dizer, é todo o nosso repertório comportamental único, aprendido na vida, que subliha nossa individualidade - e não uma instância mental autônoma situada no "interior" do ser humano. Inclusive, a noção de subjetividade como repertório comportamental aprendido no contato do sujeito com o seu ambiente único é uma das chaves para o conceito de autoconhecimento, sobre o qual o autor se debruça demoradamente em certo ponto.

No texto, o excesso de mentalismo (o entendimento de que um suposto mundo interior psíquico determinaria sobremaneira nossas condutas) descamba para os chavões da literatura de auto-ajuda: "palco da mente", "cada pessoa é protagonista de sua vida interior", "a vida de cada um é vivida de dentro", "cada um é autor de seu próprio enredo" etc. E a consequência desse tipo de pensamento, tão pouco científico quanto filosófico, é uma só, e ela não tarda a chegar: o autor diz que, assim sendo, a subjetividade não se presta a um estudo científico. Bem, felizmente há toda uma literatura especializada que o contradiz.

O mentalismo atravessa de forma tão contundente as ideias do livro que não é raro encontrar inferências curiosas como esta: "Nossas conclusões sobre nós mesmos, não importa quais sejam, são o produto de uma parte de nossa mente interagindo com outras partes dela por caminhos e de maneiras que pouco compreendemos." Ou seja, nossa avaliação de nós mesmos não vem do repertório verbal que nos é ensinado, nem dos padrões morais a que estamos submetidos: é uma luta entre partes hipotéticas de uma instância hipotética situada em lugar nenhum. Esse raciocínio solipsista, do sujeito soberano autodeterminado, ficou para trás no saber psicológico há muito tempo.

Mas o livro tem seus bons momentos, apesar de tudo. Principalmente quando Giannetti se propõe a fazer um inventário comentado das proposições filosóficas antigas sobre o tema. O mesmo ponto forte havia sido notado por mim em 'Felicidade'. Ele sabe expor as ideias dos filósofos de modo claro e inspirador, com citações diretas e proposições próprias, e isso é vital no trabalho que ele se propõe a fazer. É pena, no entanto, que isso não sustente o edifício todo.
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jmrainho 07/09/2014

Engana-te ou te devoro
No organismo humano diversas bactérias burlam o sistema imunológico enganando as defesas dos anticorpos. Algumas plantas imitam o odor e aspecto de fezes secas para atrair moscas e besouros e depois devorá-las. Animais também ludibriam outras espécies para fazer uma refeição ou se defender, como o lagarto que desprende sua calda para enganar os predadores. Portanto, tudo mundo mente na natureza. Mentem para se defender ou conseguir algo. Igual aos seres humanos. Imaginem se todos (os humanos) falasse a verdade sobre, por exemplo, o que pensam de todas as pessoas. O relacionamento social seria uma tragédia. Ninguém está preparado para ouvir umas verdades, até nos mesmos em relação ao que acreditamos. Nesse ponto entra o autoengano, tema do livro do economista Eduardo Giannetti, pela Companhia das Letras, editado em 1997.
Do ponto de vista da psicologia, o autoengano é o resultado de um processo mental que faz com que um indivíduo, em um momento, aceite como verdadeira uma informação tida como falsa por ele mesmo noutro momento. Exemplo clássico desse processo é o hábito de se adiantar o próprio relógio para não chegar atrasado aos compromissos (Wikipédia). Esse exemplo também é comentado por Giannetti. Mas também nos enganamos no olhar externo, quando achamos que existe escravidão entre as formigas, que as hienas são cruéis ou que os elefantes choram. É o ser humano medindo a Natureza pela sua régua da compreensão. No princípio dos tempos o engano surgiu, no Paraíso, onde a serpente enganou Eva, que enganou Adão, que tentou enganar Deus.
Os sentidos humanos também enganam e analisamos o mundo através deles, o que pode não ser fiel a realidade. A temperatura é um padrão humano. Vemos cores que o nosso aparelho visual capta, mas talvez existam mais e sejam na verdade diferentes de nossa percepção. O que é a realidade, então? Essa é a pergunta de Morfeu para Neo, personagem do filme Matrix, e também o questionamento proposto pela filosofia atomista de Demócrito – o mundo como nós o apreendemos pelos sentidos não é o mundo tal como ele é.
Existiriam dois tipos de engano, segundo o autor - que consulta diversos filósofos gregos, poetas como Fernando Pessoa e Shakespeare, pensadores como Nietzche, Diderot, Hume, Goethe... e também economistas clássicos como Adam Smith.- engano por ocultamente e engano por desinformação. Entretanto, todos os enganos e autoenganos trazem um aprendizado e um autoconhecimento.
Muitas aplicações podem ser feitas em nossa vida sobre essa tese. Na política econômica, área de Giannetti, e como observa Marshall, ela tem o dom de “tornar as pessoas aptas a enxergar apenas e precisamente aquelas partes da verdade econômica que estão de acordo com a sua política e a permanecerem honestamente cegas para aquelas que não estão”.
No empreendedorismo, o racionalismo tolhe a iniciativa e a energia interna do empreendedor, até seu autoengano por ir contra as previsões racionais, faz a diferença do sucesso de um empreendimento. O racionalismo nos torna covardes. É o autoengano contra certezas burras, alimentando o sonho da realização. É a energia interna contra o comodismo do não-risco. A civilização foi, é e será construída pelos sonhadores. As vezes o sonho não se concretiza, mas o não sonhar não iria construir nada de qualquer forma.


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TRECHOS
Se Prometeu pagou pelo fogo que surrupiou dos deuses com o tormento das vísceras devoradas pelos abutres, o preço do saber furtado pelo casal bíblico recaiu não só sobre eles mas sobre toda a humanidade.
É mais fácil imaginar que ouvimos estrelas do eu presumir que elas nos ouçam.
Como observa Jean Piaget, “a tendência à mentira é uma tendência natural, cuja espontaneidade e generalidade mostram quanto ela faz parte do pensamento egocêntrico da criança”.
“Quando sonhamos que sonhamos”, observa o poeta alemão Novalis, “estamos próximos do despertar”. Seria tudo um sonho que alguém do outro mundo está sonhando? Na ficção, no teatro, no cinema, na literatura, o transporte ficcional da ARTE é como se estivéssemos ganhando um descanso de nós mesmos para sonhar acordados outras vidas, crenças e emoções. Como profissional do sonhar acordado, a missão do poeta não é acreditar no que sente, mas fazer-nos acreditar que sentimos o que não sentimos. Ou sentimos?
A arte tem o dom não só de nos fazer esquecer e sentir, mas de nos fazer esquecer que estamos esquecendo e de nos fazer não sentir que sentimos sem sentir.
Mentir para si mesmo e acreditar na mentir requer talento. Se o ator dramático age e chora sem mentir, o espectador sente e chora sem agir.
“A verdade é seu dom de iludir” (Caetano Veloso)
O sonhar acordado é uma variante do autoengano.
Se você estiver relutante em descer até si mesmo, porque isso é doloroso demais, você permanecerá superficial em sua escrita.
Existe o autoengano coletivo, como o nazismo, a inquisição ibérica, o comunismo soviético.
Ninguém determina de antemão e do princípio ao fim o caminho que seguirá na vida. Ocorre que, a cada novo trecho do caminho, nós nos deparamos com novas realidades e com possibilidades desconhecidas que alteram não só as nossas expectativas sobre o futuro, mas que podem colocar o percurso já transcorrido sob uma nova luz e perspectiva. O conhecer modifica o conhecido. É por isso que tudo o que vivemos, ou seja, toda a nossa experiência passada e a imagem que temos de nós mesmos são na melhor das hipóteses construções provisórias, sujeitas a revisões mais ou menos drásticas de acordo com o caráter do que vamos descobrindo e vivenciando ao longo de nossa trajetória pessoal. A literatura mostra e a vida comum confirma que experiências críticas em nossos percursos – uma doença grave, uma perda sentida, uma conversão espiritual, uma crise afetiva, um acidente, um grande desafio profissional, uma terapia profunda – podem nos levar a rever profundamente o valor e o sentido do nosso passado e as crenças que alimentamos sobre nós mesmos. Como o lamento do poeta: “Fiz de mim o que não soube, e o que podia fazer de mim não o fiz” – Fernando Pessoa.
“Os homens”, alerta o bom senso escocês de Hume, “tem em geral uma propensão muito maior para superestimarem a si próprios do que para se autosubestimarem”. Adam Smith: “Em nenhuma fase da vida humana o desprezo pelo risco e a esperança presunçosa de sucesso encontram-se mais ativos do que naquela idade em que os jovens escolhem suas profissões”.
“Todas as grandes tentativas”, recorda-nos Platão, “são arriscadas, e é verdadeiro o provérbio segundo o qual aquilo que vale a pena nunca é fácil. Apostar na criação, em qualquer campo da atividade humana, é como entrar numa enorme loteria. As chances do sucesso, contudo, são ínfimas, e para cada premiado há uma multidão de perdedores. ”Assim a consciência nos torna a todos covardes” (Shakespeare)
Sob o olhar gelado da razão, os meios esfriam e os fins definham. Mas o criador não cede. Muitos desistem, as vezes o tolo persiste em sua tolice e se torna sábio. O saber, como sugere Aristóteles, em oposição ao otimismo platônico, não é uma condição suficiente do fazer.
A fé de que Deus está ao seu lado
“O soldado que reza melhor combate melhor”, diz o general puritano Cromwell. O autoengano de DAVI combatendo o gigante GOLIAS. Se do cálculo racional resulta a prudente covardia, do autoengano de Davi – sua inexplicável certeza na vitória e sua temeridade inocente de menino – nasce o milagre humano.
A certa altura da vida, um corretor de ações francês de meia-idade chamado PAUL GAUGUIN (filho de um jornalista francês e de uma escritora peruana ) decidiu largar um emprego bem remunerado no mercado financeiro (após a quebra na Bolsa, e além disso (atravessou dificuldades econômicas, problemas conjugais, privações e doenças), abandonar esposa e filhos pequenos, desligar-se de tudo e de todos e ir viver sozinho (com a ajuda financeira de amigos artistas e depois de um leilão de suas 40 obras) sua paixão pela pintura e pelo sensualismo dos trópicos nas ilhas remotas do Taiti (1891), depois de várias tentativas fracassadas de desenvolver sua arte em Paris e no interior. Justificou a sua mulher: “Sou um grande artista e estou certo disso”. Não é difícil justificar a sua fabulosa aposta à luz da obra que resultou dela, ainda que o reconhecimento do valor inestimável de seu trabalho no Taiti só tenha ocorrido, como em todos outros casos, muitos anos depois da sua morte. (No Taiti criou algumas de suas obras mais importantes, como "De onde viemos? O que somos? Para onde vamos?", uma tela enorme que sintetiza toda a sua pintura, realizada antes de uma frustrada tentativa de suicídio utilizando arsênio. No momento da aposta de Gauguin, ele ainda não era Gauguin.
“A informação que se tem não é a informação que se quer. A informação que se quer não é a informação da qual se precisa. A informação da qual se precisa não é a informação do que se quer pagar.” (autor anônimo).
Como o saber, é certo, reduz-se a ignorância; mas cresce a consciência da ignorância. O fato é que se todos os empreendedores potenciais agissem como calculistas prudentes, e só fizessem novos investimentos quando estivessem de posse de tudo aquilo de que precisam para estar racionalmente seguros de que não sairão perdedores em suas apostas, o ânimo empreendedor definharia e a economia entraria em séria depressão. O hiato entre o cálculo racional e a ação empresarial é preenchido pelo que lorde Keynes chamou de animal spirits: “[A maior parte das nossas decisões] de fazer algo positivo [...] só pode ser entendida como o resultado de animal spirits […] e não como o fruto de benefícios mensurados multiplicados por probabilidades mensuradas […] A iniciativa individual somente será adequada no momento em que o cálculo racional for complementado e sustentado por animal spirits, de tal modo que a antecipação da perda final que por vezes alcança os pioneiros, como a experiência sem dúvida revela a eles e a nós, seja afastada e posta de lado, assim como um homem saudável afasta a expectativa da morte”.
A cegueira protetora do empreendedor filtra a incerteza e exarceba o brilho da realização. Os animal spirits keynesianos – a certeza subjetiva que move o grande realizador empresarial, ultrapassando o cálculo racional e fazendo-o esquecer aquilo que sabe mas não pode lembrar – parecem conter um claro e generoso componente de auto-engano.
Os limites da racionalidade fria e o valor positivo do autoengano parecem também com clareza em situações agudas de adversidade. O dom de mentir com sucesso para si mesmo pode ajudar a manter a chama da vida acesa nos momentos em que a sobrevivência está por um fio.
A mobilização radical dos recursos de sobrevivência do organismo em situações de extrema adversidade ajuda a entender a quase total ausência de episódios de suicídio nos campos de concentração. Enquanto se luta desesperadamente, a cada hora do dia, para preservar as condições mínimas de sobrevivência biológica, não há espaço para o luxo de uma depressão. Foi apenas após a libertação, quando os ex-prisioneiros puderam afinal respirar, olhar para trás e refletir sobre os horrores e humilhações que suportaram nos campos, que muitos deles entraram em estado depressivo crônico. Foi só a partir desse momento que, paradoxalmente, um grande número de sobreviventes dos campos sucumbiu ao suicídio. A morte é a fronteira da vida. Ela não é o alvo da vida, mas seu ponto final. Morrer nos priva de um universo de possibilidades à nossa frente. Não é preciso morrer para perder a vida. Mas enquanto há vida nem tudo está perdido.
O TEMPLO DE APOLO EM DELFOS, centro religioso e geográfico do mundo grego, continha duas inscrições lapidares. Uma recomendava a incessante busca do autoconhecimento: “CONHECE-TE A TI MESMO”. A outra estabelecia uma norma a ser observada na vida, o princípio da moderação, pela máxima, “NADA EM EXCESSO”.
“Com o sabe cresce a dúvida” (Goethe). O conhecer modifica o conhecido. Para chegarmos a uma compreensão do mundo como ele é, temos que abrir mão do nosso mundo – temos que transcender o nosso ponto de vista pessoal, parcial, irrefletido e limitado para buscar compreende-lo. Duas estratégias: o empirismo baconiano e o racionalismo cartesiano.
Mudou a paisagem ou mudou eu? (sobre como vemos a mesma paisagem quando estamos alegres ou deprimidos).
Nenhum saber é final. Nada é o que parece. Assim como o homem primitivo viveu num mundo de sonho em relação aos fenômenos da natureza, também nós ainda vivemos num mundo de sonho em relação a nós mesmos e pouco ou nada sabemos sobre as causas verdadeiras de nossas ações na vida prática.
Por que o autoconhecimento? “A vida irrefletida não vale a pena ser vivida” (Sócrates). Sócrates vê um mundo equivocado ao seu redor e vislumbra um mundo de possibilidades à sua frente. À vida cega, febril e desorientada de seus concidadãos, ele opõe o ideal de uma outra vida – de um viver movido não pelo brilho efêmero de falsos valores como o poder, o prestígio, o amor carnal e a riqueza, mas pela ambição de ser melhor do que se é e pela busca sem tréguas do aperfeiçoamento da alma.
“O mundo recompensa com mais freqüência os sinais externos de mérito do que o próprio mérito” (La Rochefoucauld)
A maior parte das pessoas subestima a incerteza do mundo (Hirshman).
Há sempre uma certa covardia ou moleza nas pessoas de bem. Só os aventureiros tem convicções. De que? De que tem de vencer. Por isso vencem (Baudelaire)
Entre os filósofos pré-socráticos foi Heráclito, talvez, quem mais se aproximou do ponto de vista socrático ao argumentar que a verdadeira sabedoria não consiste no acúmulo de saberes positivos (técnicas e informações), mas no despertar da alma da sonolência de sua subjetividade para uma apreensão racional da ordem que preside o mundo; é a crença de que todo saber nasce do autoconhecimento que explicaria o intrigante fragmento(101): “Eu me procurei a mim mesmo”.
Demócrito teria cegado os olhos para pensar melhor, segundo a lenda. Sócrates ia além: “Enquanto possuirmos o corpo, e a nossa alma estiver contaminada por esse mal, decerto nunca conquistaremos aquilo que desejamos – e isto, dizemos, é a verdade. Pois o copo nos proporciona inumeráveis distrações... ele nos preenche com taras e desejos, com medos e fantasias de toda a espécie... de tal forma que ... por causa dele nunca estamos aptos a pensar.Então é o corpo e seus desejos que trazem as guerras, as facções e as brigas, uma vez que é por conta da aquisição de riqueza que todas as guerras acontecem e somos compelidos a ganhar por causa do corpo, escravizados como estamos em servi-lo.
“Nada é tão difícil quanto não se enganar a si próprio” (Witgensein, que aconselha a um ex-aluno: “Você não conseguirá pensar decentemente se não quiser ferir-se a si próprio”.
Toda vitória é parcial, toda conquista, provisória, e toda certeza, suspeita.
Quem, contra a vontade, é convencido, cala e obedece mas não se dá por vencido.
O universo paralelo do amor-paixão na vida privada é a paixão pelo poder e proeminência na vida pública. Na política e no mundo dos negócios, assim como na religião, na arte ou em qualquer outro reino hierárquico deste mundo, as exigências da vida prática impõem suas próprias leis. Como no amor, o começo é caprichoso, o primeiro passo fatal. Sai a flecha, entra o ferrão: a proverbial MOSCA AZUL da ambição é cega e certeira como Cupido. Muitos se acreditam chamados, mas poucos se fazem escolher. A luta na arena competitiva de busca de votos, adesões, preferências e aplausos humanos é jogo duro. Tanto a falta de gás como uma combinação imprópria de calor e luz podem ser fatais. Apostar alto, lutar, não desistir, batalhar sem trégua, persistir na lide e ir além são condutas que demandam não só doses cavalares de motivação, mas – o que é menos sabido – toda sorte de façanhas, loopings e saltos acrobáticos do acreditar. O imperativo número um da pessoa ambiciosa em qualquer área de atividade é acreditar em si própria. Fingir não basta. A hipocrisia social pode dar conta do recado quando se trata de satisfazer o padrão de comportamento identificado por La Rochefoucauld ao afirmar que “para fazermos tudo o que podemos para parecer bem-sucedidos”.
Mas convencer-se a si mesmo – no início e ao longo da jornada – de que vale a pena apostar alto numa determinada estratégia de ascensão e liderança na vida prática é outra história. Para embalar o ouvido interno e empolgar a platéia interior, a música precisa vir de dentro. Ela precisa seduzir e nos convencer sinceramente de que sabemos o que queremos, merecemos o que pleiteamos e estamos justificados, aos nossos próprios olhos, em nutrir tais pretensões. Se nem eu aposto em mim, quem apostará?
Sobre o papel decisivo da SORTE no sucesso de empreendimentos inovadores, ver FRANK KNIGHT (economista, um dos fundadores da Escola de Chicago, com teses sobre risco e incerteza), “Freedon as fact and criterion”, Freedon and reform, p. 13. Numa passagem que claramente lembra o tema keynesiano da motivação não econômica da decisão de investir, Nisbett e Ross observam: “Os benefícios sociais das probabilidades subjetivas errôneas dos indivíduos podem ser altos mesmo quando os indivíduos pagam um preço alto pelo erro. Provavelmente teríamos poucos escritores, atores ou cientistas se todos os aspirantes potenciais a essas carreiras tomassem decisões baseadas numa probabilidade (realista) de sucesso. Também poderíamos ter poucos novos produtos, movimentos políticos, inovações médicas ou descobertas científicas”. Em outro artigo: “A maior parte das empresas de sucesso tornou-se o que é porque em algum momento de sua conturbada evolução ela simplesmente se recusaram a fechar e foram em frente, contra todas as previsões. Infelizmente, muitas empresas malsucedidas compartilham esse mesmo traço. Uma das tarefas mais difíceis para os administradores, portanto, é fazer uma avaliação acurada de suas chances de sucesso. A maioria dos economistas (...) seria demasiadamente propensa a desistir. Felizmente, entretanto, ninguém até agora sugeriu que se permita aos novos economistas administrar alguma coisa”.
“A obstinação e a convicção exagerada”, dizia Montainge, atônito diante dos entusiasmos e das guerras santas de seu tempo, “são a prova mais evidente da estupidez”.
A hipnose da boa causa, qualquer que ela seja, produz no indivíduo uma espécie de cegueira protetora. No caso da política econômica, como observa Marshall, ela tem o dom de “tornar as pessoas aptas a enxergar apenas e precisamente aquelas partes da verdade econômica que estão de acordo com a sua política e a permanecerem honestamente cegas para aquelas que não estão”. A honestidade e a boa-fé da cegueira são a senha do autoengano e sua condição essencial de eficácia.
Os sacrifícios que padeceram para que chegássemos até aqui ganham sentido. Nada foi em vão. O futuro, agora, está ao alcance da mão. Quando a pólvora das circunstâncias é farta, basta a centelha para detonar a explosão.
O revolucionário vive fora de si, possuído por uma verdade que o transcende. Ele é o porta-voz terrestre da Providência, como Cromweell. Ele é a encarnação humana do incorruptível da Vontade Geral, como Robespierre. Ele é o instrumento de ponta no qual a História se serve para avançar em sua marcha dialética, como Lenin. Nenhum sacrifício é demais. “Se você pensar na revolução”, recomenda Lenin, “sonhar com a revolução, dormir com a revolução por trinta anos, você está fadado a conquistar a revolução um dia.
Sonhar e acreditar no sonho são o sal da vida. Ousar o novo, tentar o não tentado, pensar o impensável – é a fonte de toda mudança, de todo o avanço e da ambição individual e coletiva de viver melhor. Viver na retranca, sem esperança e sem aventura, não leva ao desastre, é verdade, mas também não leva a nada. O problema não está em sonhar e apostar, mas na qualidade do sonho e na natureza da aposta.
A pessoa movida por uma paixão poderosa, qualquer que ela seja, vive um momento de máxima força e máxima fragilidade. Suas certezas brilham e ofuscam. Sua autoconfiança revigora o ânimo mas tende a afogar a lucidez. A mesma confiança em si mesmo que move montanhas na vida pública e irriga o agreste na vida privada é o passaporte do auto-engano. O acreditar é aliado do instinto.
A quadratura do círculo é insidiosa e segue um padrão bem definido. Duvidar dói. Se a certeza que me toma é tão íntima, veemente e arrebatadora, então ela só pode ser verdadeira. Se o meu entusiasmo pela causa é tão intenso e as convicções que me movem à frente são tão fortes, então elas não podem ser falsas.
Seria exagero, é certo, supor que quanto maior a intensidade de uma crença, menor é a probabilidade de que ela seja verdadeira. Mas o envolvimento de emoções poderosas no processo de formação de crenças é razão de sobra para que se proceda com a máxima cautela. A força do acreditar, é verdade, faz milagres. Mas isso não a torna critério da verdade, assim como a disposição a resistir e agüentar todo tipo de perseguição em nome de um ideal revela, sim, bravura, mas nada nos diz sobre a validade da causa em jogo de um ponto de vista ético.
O princípio da complementaridade na física quântica reza que “uma grande verdade é uma afirmação cujo contrário é também uma grande verdade”. O poeta Holderlin afirma que “o homem é um deus quando sonha, um mendigo quando reflete.
Como recorda Nietzsche: “Um único cristão apenas existiu, e ele morreu na cruz”.
Um indivíduo que sentisse pelos outros com a intensidade que sente por si próprio endoideceria ao clamor de uma cacofonia infernal de apetites e pulsões. Uma espécie que perdesse radicalmente a crença em si mesma e na possibilidade de sentido em seu destino sucumbiria sob o peso esmagador da futilidade de qualquer esforço e da gratuidade de existir.
O testemunho inocente das paixões tende a fazer de cada coração humano o centro sensível do universo.
“Não é contrário à razão preferir a destruição do mundo inteiro ao esfolar de meu dedo”
Se encontrasse por acaso um anel, como no mito platônico, que permitisse à pessoa que o achou ficar invisível quando lhe conviesse e, desse modo, gozar de absoluta imunidade a qualquer tipo de sanção externa? “Ser bom”, pondera o filosofo pré-socrático Demócrito, “significa não fazer mal algum e, além disso, não querer fazer mal.
Acreditar que ninguém pratica o mal de modo deliberado e cínico, como sustentam alguns adeptos do romantismo filosófico, seria ir longe demais.
Filipe II e Isabel, a Católica, infligiram mais sofrimento obedecendo às suas consciências do que Nero e Dominiciano obedecendo às suas taras” (Leky, História da Moral Européia).
“Ninguém é bom juiz em causa própria”, Aristóteles.
A visão que cada um tem de si mesmo não é aquela que os outros têm dele. O ponto de vista interno do indivíduo sobre o seu próprio caráter e conduta na vida prática difere da perspectiva essencialmente externa daqueles com os quais ele se relacional.
Quem, no tribunal silencioso da própria alma, julga que tem o que merece ou recebe mais do que dá? Mas quando as coisas começam a dar errado – quando o plano de governo, a empresa, o time ou o movimento dão sinais de naufrágio à vista – as recriminações e atribuições cruzadas de culpa não tardam. O fracasso é órfão. Razões, desculpas, imprevistos e culpados de todos os tipos e procedências ocorrem-nos. O deprimido vive como um pária na sarjeta de sua convivência interna. A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha. Felizmente, porém, na ampla maioria dos casos o quadro é apenas temporário. Um dia o tempo abre, renasce o gosto de ser quem se é.
Fumar um cigarro e comer um doce, por exemplo, são decisões TÁTICAS.; parar de fumar e fazer regime são ESTRATÉGIAS. Estudar (ou não) para a prova de amanhã é uma escolha tática; fazer um curso técnico ou superior faz parte de um plano de vida. O flerte é tático; o casamento, estratégico.
As decisões estratégicas, assim como as táticas, são tomadas no presente. A diferença é que elas têm o longo prazo como horizonte e visam à realização de objetivos mais remotos e permanentes. “O homem”, observou o poeta Paul Valér, “é o herdeiro e refém do tempo – o animal cuja principal morada está no passado ou no futuro”.
O problema da miopia temporal da existência humana é retratado de forma magnífica pela tradição poética grega em torno dos perigos enfrentados pelos navegantes ao ouvir o canto das SEREIAS.
ORFEU preferiu impedir que a tripulação ouvisse o chamado das sereias tocando uma música ainda mais alta. ULISSES criou o estratagema de pedir que a tripulação tapasse os ouvidos com cera e o amarrasse ao mastro, para ouvir o canto das sereias e ordenar que não o soltassem mesmo que gritasse e implorasse.
O embate entre Ulisses e as sereias dramatiza e dá proporções épicas a um conflito que acompanha a nossa prosaica odisséia pela vida. Como alerta David Hume, “não existe atributo da natureza humana que provoque mais erros fatais em nossa conduta do que aquele que nos leva a preferir o que quer que esteja presente em relação ao que está distante e remoto, e que nos faz desejar os objetos mais de acordo com a sua situação do que com o seu valor intrínseco”
“Cada homem faz o seu próprio naufrágio” (Lucano, poeta romano).
Sua vida não precisa necessariamente girar em torno de sexo, drogas, surfe e rock, excluindo tudo o demais. O crucial é que o jovem tiranizado pelo eu-agora faça gigantescas apostas, tome empréstimos, empenhe a herança e emita notas promissórias se medir consequências, sempre no conforto de que as contas não terão que ser pagas agora nem no futuro imediato, mas só serão cobradas bem mais tarde, num futuro remoto e hipotético, além de remetidas diretamente a um senhor mais velho que, apesar de homônimo, não guarda qualquer parentesco com ele (o eu-depois). Um dia, porém, se é que as sereias não ficaram com tudo antes, as contas começam a chegar. O eu-agora já não tem o viço e o frescor dos seus melhores dias e perdeu alguns assentos cruciais na assembléia interna para o eu-depois.
O caminho da moderação não está isento de pecar pelo excesso, quando nos leva longe demais nessa direção. A sombra de um futuro imaginado pode oprimir e sufocar o presente vivido.
O pseudojovem evita desaborrachar-se ao encontro de Cila, o monstro selvagem do desejo imediato e inconseqüente, mas é tragado pela mesmice de Caríbdis, o do rodamoinho obsessivo da cautela e da retranca existencial. Ele atravessa a odisséia prosaica de sua vida sob a sombra de um futuro tirânico e ameaçador, como um tripulante anônimo de si mesmo – de bússola nas mãos, mas com os ouvidos tampados. Ele protege a sua velhice imaginada, é certo, mas perde a juventude.
“O proceder do insensato”, adverte o rei Salomão (segundo filho de Davi com Betsabéia), “parece correto aos seus próprios olhos”.
Ulisses amarrou-se ao mastro; a humanidade amarrou-se a regras morais.
Maquiavel considerava a questão junto ao mal de escolher entre ADERIR, CALAR-SE ou RESITIR a um regime opressor que ganha o poder.
Nietzche, em O Anticristo, define o político: “Aquele animal traiçoeiro e ardiloso, vulgarmente chamado de estadista ou político, cujas opiniões são ditadas pelas flutuações momentâneas dos acontecimentos”.
Embora cada um tenda a ficar em situação ainda pior caso abra mão sozinho de sua esperteza egoísta, todos juntos estariam seguramente em situação muito superior sem ela. “Cada um de vós em separado, admito, tem a alma astuta da raposa; mas todos juntos sois como um tolo de cabeça oca: (Sólon).
É muito provável que usos e costumes correntes hoje em dia, principalmente no tocante a relações de trabalho, ao lugar da ambição econômica como valor cultural, à apropriação de recursos naturais e ao tratamento de crianças e idosos, venham a ser encarados num futuro quiçá não muito distante como prática tão injustificáveis do ponto de vista moral quanto algum dos piores excessos cometidos por nossos antepassados no ambiente ancestral.
Na sociedade perfeita, os problemas fundamentais da existência e da realização humanas continuariam a ser exatamente o que sempre foram; mas os indivíduos não poderiam mais culpar o “sistema”, a “sociedade injusta” ou os “outros” por seus equívocos, frustrações e fracassos, Quantas racionalizações confortáveis não cairiam por terra! E quantas novas “razões” sofisticadas e até aqui impensadas não brotariam instantaneamente em seu lugar!
A idéia da perfeição é obviamente uma ficção humana. Seu grande mérito – como é o caso das utopias em geral – é servir como contraste que inspire e permita realçar com tintas fortes a extensão do hiato entre o que é e o que pode ser. Mais que um sonho, o ideal é uma arma com a qual se desnuda um mundo injusto, corrompido e opressivo.
“O caminho do inferno”, alertava o cruzado militante são Bernardo, “está repleto de boas intenções”. O problema é que o imobilismo e a resignação também chagam lá. Se agir é muitas vezes perigoso, deixar de agir pode ser fatal.
A prevenção do mal ajuda, mas não sacia o desejo humano de encontrar o bem. Navegar é preciso. Ouvidos abertos, olho na bússola, mastro à mão.
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Ana Paula 22/06/2015

Muito interessante
É uma leitura gostosa e curiosa. Pena que ainda não consegui termina-lo, mas assim que tiver umas boas férias, volto a ler.
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