Matheus Alves Carmo 15/10/2020
Um sci-fi de ritmo lento, mas muito imaginativo!
Terra Longa foi pra mim uma grande surpresa, uma das melhores ficções científicas que já li, e certamente um de meus livros favoritos.
Antes de mais nada, pra alguém que porventura queira ler esse livro: Ele é o primeiro de uma saga de cinco livros, e o único publicado até o momento. Que eu lembre, a capa e a sinopse não mencionam isso claramente, o que me deixou perdido ao final do livro, que termina bem em aberto. Nos EUA todos os livros estão publicados, então quem quiser pode se aventurar a ler em inglês.
"No momento em que depredamos a Terra Padrão, extinguimos a maior parte das outras espécies e estamos prestes a sucumbir a uma guerra sem fronteiras por recursos naturais, tcharãn, uma infinidade de Terra aparece à nossa disposição. Que tipo de Deus elabora uma façanha dessas?"
O livro nos trás uma realidade em que, determinado dia, um modelo de um dispositivo super simples é vazado na internet. Se trata de um saltador, que permite às pessoas viajarem a planetas Terra alternativos, com a mesma idade da nossa Terra, mas diferenças evolutivas, principalmente a falta da própria vida humana. No primeiro dia várias crianças em Madinson resolvem montar um para testar, e ao usar, acabam se deparando com um mundo estranho e tendo náuseas. Apenas Joshua, nosso protagonista, consegue manter o controle e ajuda a todas elas, o que o deixa, para seu desprazer, mundialmente reconhecido. A trama gira em torno dele, junto a um humano/inteligência artificial (sério!) Em uma jornada pela Terra longa, descobrindo os segredos desta.
"? O que significa tudo isso, Lobsang? Essa era a pergunta de Nelson. Para que serve a Terra Longa?"
Esse foi meu primeiro contato com os autores, apesar de serem autores consagrados, e pra mim foi uma ótima porta de entrada. Li em outra resenha que Baxter é quem tem um estilo mais "técnico", o que não espanta visto que é matemático e engenheiro. Pelo que pesquisei não tem muitos livros publicados no Brasil, o que é uma pena, pois sua aparente contribuição nos livros está no amplo aspecto científico que ele tem, nos trazendo um grande realismo e muitas questões sobre evolução.
"A capacidade de saltar deve influir sobre todos os aspectos do estilo de vida de uma criatura, se você oferece à evolução tempo suficiente para testá- la."
Já Pratchett é reconhecido por um estilo mais nonsense, o que é visto pela sua série que eu já conhecia por cima, Discworld. E esse estilo também é presente no livro, não de uma forma exagerada, pra mim, mas de um jeito sutil, com algumas quebras de expectativas. Com a frase a seguir, inclusive, achei que seria mais louco do que realmente foi.
"? Quem é Lobsang?
? Eu? disse a máquina de refrigerante."
Uma parte que devo ressaltar de cara, é que o livro tem um estilo narrativo lento, o que é uma das maiores reclamacoe por parte dos leitores, mas que particularmente não me incomodou. Não é um livro com cenas de ação (consigo contar nos dedos de uma mão), nem com plot twists o tempo todo. O foco do livro é a construção de mundo, ou melhor, dos mundos, e a exploração dos mistérios destes. Então é comum termos grandes parágrafos, como esse que escrevo, com explicações sobre o que aconteceu com determinado lugar ou pessoa. São bastante expositivas, mas ajudam a nós ambientar nesse mundo novo de possibilidades.
"Mais tarde, foram surgindo cidades, se bem que cidades diferentes, e novas formas de viver, uma mistura de passado e presente, enquanto velhos costumes se transformavam gradualmente em novos. A comida era boa, também."
O mais interessante que achei na forma narrativa do livro, foi que às vezes ele parecia uma antologia de "contos da Terra Longa". Adicionando personagens e tramas secundárias no meio do livro, aparentemente desconexas do todo, mas que acabavam fazendo sentido depois. Aliás, sem dar spoilers, o começo do livro é bastante estranho, mas ao terminarmos o livro se torna demais.
"? Acontece que a população está diminuindo rapidamente. Os centros urbanos foram abandonados. A economia entrou em colapso."
Uma das coisas que mais gosto em uma história, principalmente em ficções científicas e fantasias, é o Worldbuilding. Como quem cria lida com os impactos causados pela premissa criada. É o famoso "E se?". Outra coisa que curto demais são premissas "loucas": viagens no tempo, distopias, uma ilha com uma fumaça preta...
Então esse livro não tinha como dar errado pra mim.
"? A difusão da humanidade pela Terra Longa certamente vai causar muito mais do que meros problemas políticos. Posso imaginar um tempo no qual a humanidade estará tão dispersa que começarão a surgir diferenças genéticas significativas em ambos os extremos da hegemonia humana."
Os autores conseguem criar seu universo (ou multiverso?) com maestria, explorando todo o leque de possibilidades que uma premissa absurda como essa traria. Muitas vezes me fiz perguntas que foram respondidas mais à frente, o que mostra um grande cuidado deles com a coerência narrativa e do universo. Eles nos trazem tanto implicações evolutivas (com uma variedade de mundos), como implicações sociais que a Terra longa trás (espaço e comida infinitos?!).
"Todos preferiam fazer viagens longas, do ponto de vista geográfico, na Terra Padrão, já que ela dispunha de um sofisticado sistema de transporte. Um Saltador podia levar a pessoa a mil mundos diferentes, mas não proporcionava um metro de movimento lateral. Por essa razão, o transporte se tornara um dos poucos setores da economia da Terra Padrão que haviam prosperado na era pós-salto. A Padrão estava começando a parecer, na verdade, a encruzilhada da Terra Longa."
Os personagens são bons, nada muito extraordinário, mas não me deixaram a desejar. Joshua é interessante por seu jeito solitário e Lobsang por seu jeito excêntrico. Sally aparece pouco, e não tem tanto desenvolvimento, mas é uma boa personagem. Jannson é ótima, tem um mini arco muito divertido, e outros personagens que aparecem ao longo da história também cumprem bem seu papel.
(A partir daqui, alguns pequenos spoilers, não tão relevantes, mas vale o aviso)
Uma questão muito boa na construção narrativa foi a impossibilidade de saltar com objetos de ferro. Não há explicação certa, apenas suposições, mas é algo que influencia bastante na questão da relação entre humanos e a Terra longa, dificultando, por exemplo, que todo o desenvolvimento humano atual fosse transportado para outras terras.
"Fico impressionado com o modo como a exploração da Terra Longa pela humanidade é afetada por um único fato: a impossibilidade de transportar objetos de ferro para outros mundos."
Política? Temos governos discutindo como lidar com a migração para outros mundos, e se seus territórios equivalentes em outros mundos estão sobre sua jurisdição. Economia? Temos os impactos econômicos que a debandada de boa parte da população causou. Religião? Temos como algumas religiões reagiram a isso, e surgimento de novas, e até grupos extremistas. Tudo enriquece a trama e o mundo criado por eles.
"Será que tinham direito a se apropriar daquelas terras e ponto final? Qual era o papel do governo no processo? O território correspondente aos Estados Unidos nos mundos alternativos podia ser considerado território norte-americano?"
Uma questão muito agregadora na trama são os saltadores naturais, que não precisam da máquina, e os fóbicos, que não saltam/não se dão bem com saltos. Trazem um ótimo subtexto sobre preconceito e discriminação.
"Sim, tinha ouvido falar de pessoas como ele. Algumas dessas pessoas haviam sido espancadas, como se fossem aberrações, como se não fosse certo fazer o que faziam."
(**A partir daqui spoilers maiores sobre a trama em si**)
Bom, no meu caso acabei tendo um grande baque ao final da história, ao saber que esse era o primeiro livro de uma série. Não cheguei a achar ruim, pois realmente amei a história, então ver mais dela será ótimo, apenas não estava preparado pra que fosse assim (mas realmente estava achando que o final seria bem apressado). Tirando um pouco meu lado "que virou fã", admito que o livro se trata mais de uma introdução do que qualquer coisa. Introduz o conceito, introduz a humanidade lidando com isso, introduz uma problemática e um antagonista, mas acaba não desenvolvendo tanto por enquanto. Como disse, eu gostei, mas é meu estilo.
"? Está bem. Você quer a história completa? Pertenço a uma família de saltadores. Saltadores naturais..."
A questão dos saltadores naturais é algo sobre o qual não temos um ponto final, e gostaria de ver aprofundado nos outros livros. Sally faz parecer que é algo até como uma "Ordem secreta", então acharia legal conhecer mais de pessoas que conheciam a Terra Longa (não só por saltos acidentais).
"Não se trata de um ser malévolo. Não podemos dizer que ela esteja errada. Primeira Pessoa do Singular é simplesmente a expressão de outro tipo de inteligência. Outro modelo, digamos assim. Contudo..."
Estava achando estranho que o livro estivesse tão próximo ao fim quando Primeira Pessoa do Singular aparece pra valer, já achava que seria um final apressado. Sabendo agora das continuações, espero um aprofundamento bom desse ser único, mas não o imagino como único antagonista. Ansioso pra ver o que os autores reservaram.
"? Pense, por exemplo, no Vazio. No Marte Longo! Quem sabe? Não paro de pensar nisso. Se chegarmos a Marte e dermos alguns saltos, poderemos encontrar um Marte habitável!"
Se já estava empolgado com todas as possibilidades da Terra Longa, Marte Longa foi muito empolgante, e inclusive havia pensado nisso antes dessa parte. Com o final do livro, me empolguei ainda mais para ver essas possibilidades sendo abertas.
"? Acho que ninguém quer ser diferente dos outros."
Bom, depois dessa que foi muito provavelmente minha maior resenha, fica claro que me apaixonei pelo livro. Certamente não é pra todos, mas para quem gosta de narrativas imaginativas, às vezes um pouco viajadas, vale a pena tentar.
"? A mim parece uma poesia, senhor. Ou pode ser a letra de uma música. Diz que as pessoas criticam aquilo que não conseguem entender."