Ave Fantasma 27/03/2024O motivo para se levantar de manhã (mas em uma obra pouco profunda)Antes de falar sobre os tópicos abordados no livro Ikigai, gostaria de pontuar o que me incomodou na obra.
1. A constante utilização de grandes nomes dos negócios japoneses ou de americanos (e outros), entendo que a obra tem o objetivo de ser uma auto-ajuda e se tratando de ikigai a relação com o trabalho profissional é intrínseca, mas a proposta divulgada não é se voltar para o mundo dos negócios e esse foco quebra um pouco o clima de um propósito mais pessoal.
2. Pouca criticidade no texto ao se referir a grandes coorporações e personalidades que tiveram ações exploratórias e danosas para pessoas e o meio ambiente, como dizer que Steve Jobs foi “um indivíduo incrível” como exemplo de kodawari sem mencionar a exploração abusiva incentivada por ele na sua empresa. A obra não cabe uma análise profunda dessas questões, mas é de bom senso contextualizar que os mesmos não são heróis.
3. Pouca ou nenhuma contextualização de elementos problemáticos: Apesar do autor tentar trazer alguns contextos históricos, o que é bem vindo no texto, há momentos essenciais que isso não é feito como quando cita o símbolo do sol nascente como algo positivo nas logos de empresas japonesas sem mencionar sua ligação com a agressão imperial japonesa e os crimes de guerra.
4. Uma questão mais estrutural é que os passos para o ikigai se misturam muito no texto, sem uma ordem específica, o que deixa a leitura um pouco desorganizada. Mas não é um ponto tão negativo, porque a conexão vai ganhando sentido na última parte da obra.
Fora essas questões que, para minha experiência, tirou um pouco da profundidade que o tema poderia ser abordado, a obra permite uma introdução simples sobre o ikigai que podemos destacar:
Em resumo ikigai se divide em cinco passos:
Passo 1: Começar pequeno
Passo 2: Libertar-se
Passo 3: Harmonia e sustentabilidade
Passo 4: A alegria das pequenas coisas
Passo 5: Estar no aqui e agora
A pressão constante e urgente para o sucesso pode alterar o nosso valor como pessoa fazendo-nos acreditar que sucesso é alguma conquista concreta, indo em posição contrária ao que o ikigai é: se concentrar nas pequenas coisas, estar presente e fazer aquilo que se ama de maneira dedicada, se realizando assim.
Ikigai é, portanto, um éthos para a vida longa, saudável e feliz. Ele vai além do âmbito individual, é uma noção de comunidade e uma percepção de espiritualidade. Ele dá propósito e determinação para seguir em frente.
As breves histórias e contextualizações históricas sobre o Japão preenche o livro de maneira muito informativa e ilustra o ikigai: a beleza nas pequenas coisas como comer algo doce logo cedo é ingerir a alegria das pequenas coisas (quarto pilar).
Nos é apresentado outros termos japoneses como:
kodawari: manifestação de orgulho pelo que se faz, ou seja, um cuidado extraordinário com detalhes bem pequenos, o começar pequeno (primeiro pilar);
hanami: admirar o florescer da flor de cerejeira na primavera é encarar com seriedade as coisas efêmeras da vida, é estar no aqui e agora (quinto pilar)
Uma questão abordada na obra é a importância da individualidade que seja expressada nas pequenas coisas, esse elemento na cultura japonesa ganha outro sentido. A individualidade pregada na globalização afasta e homogeniza os indivíduos, já em algumas culturas a valorização da individualidade como o cultivo do ser interior é o que torna este indivíduo capaz de se realizar e se expressar no mundo para com os outros. No caso do Japão fazer uma referência direta a si mesmo não alcança o sentido do eu libertador, apenas de uma individualidade condicionada, limitada.
Ken Mogi repete em alguns momentos sobre a figura da criança que está despreocupada com um suposto peso da definição social do eu. Isso leva ao libertar-se (segundo pilar).
“Ao nos aliviar do peso da individualidade, nós podemos nos abrir para o universo infinito de prazeres sensoriais”.
Pensar em ikigai é entender que ele é um processo de fluxo e criatividade, a obra tem um capítulo dedicado a esse estado psicológico. Ao alcançar o “fluxo” não há a necessidade de reconhecimento do trabalho ou dos esforços, você ficará em harmonia com os elementos dentro e fora de si e terá capacidade cognitiva de prestar atenção às nuances sutis que surgem, diferentemente de quando se está perturbado, ou tendencioso.
“Portanto, faça uma música, mesmo quando ninguém estiver ouvindo. Faça um desenho, mesmo que ninguém esteja olhando. Escreva um conto que ninguém vai ler. A alegria e a satisfação interior que isso lhe dará serão mais do que suficientes para que você siga em frente com a vida.”
O terceiro pilar, harmonia e sustentabilidade, tem relação com a conexão dos japoneses com a natureza, eles transformaram o controle de vontades individuais em uma forma de arte de modéstia, estética austera e suficiência elegante: madeira lisa sem tratamento de bancadas de sushi, tomar banho em fontes termais, natureza dentro de casa, quadros do monte Fuji, passeios por florestas e montanhas, jardins, santuários, etc.
Nos capítulo 8 Ken Mogi retrata a robustez e resiliência do povo japonês como características da prática do ikigai e debate sobre a religiosidade. Influenciados pelo xintoísmo, confucionismo, budismo, e até o cristianismo os japoneses acreditam que há infinitamente mais fontes de significado religioso e valores na vida, e não um único valor que representa a vontade de uma deidade.
O livro conclui o conceito de ikigai como um processo de aceitação do eu. A felicidade não pode ser definida em uma ação ou conquista específica, isso é o que é chamado de “Ilusão de foco”. É preciso se aceitar verdadeiramente, libertar-se do eu ilusório, assim alcançaremos a felicidade real.