Marcelo 30/05/2023minha estanteO crime do Cais do Valongo, de Eliana Alves Cruz, é uma viagem ao início do século XIX no Rio de Janeiro, época do nascimento do Império no Brasil. Histórias sobre a nobreza? Não. Os heróis da futura independência? Não. Talvez sobre as coxias do poder, alguma revelação palaciana? Também não. A não ser pelo contexto, pouca coisa remete aos grandes eventos. Nesse livro, o que importa é a história daqueles que ficaram à margem da história oficial mas que, ao mesmo tempo, possibilitaram que ela existisse, pois eram a força de trabalho. Resgate daqueles que por toda vida pegaram no pesado, foram escravizados e sustentaram a base sobre a qual erigiu-se nosso modelo de Brasil: escravista, patrimonialista, parasitário do poder e racista, profundamente racista.
O mestiço Nuno, um típico malandro do século XIX, beberrão e ateu, é o personagem que nos apresenta a história do crime do Cais do Valongo que casualmente ocorre perto de sua casa. Trata-se do assassinato de Bernardo, um próspero e inescrupuloso comerciante com pretensões ao círculo mais restrito da sociedade da época.
Nuno é o narrador, mas a voz principal é Muana, escravizada de origem moçambicana e propriedade do comerciante morto. Letrada, é ela quem permite a Nuno desvelar os meandros da história que culmina no assassinato de seu dono. Mas não só. Descreve também a sua própria história desde Namuli, em Moçambique, o embarque em Quelimane, a travessia do Atlântico e os muitos mortos pelo caminho, tanto de estranhos como de familiares seus. Um livro dentro do livro.
Romance histórico é sempre uma árdua tarefa. Requer muita pesquisa, dezenas de milhares de páginas lidas para se produzir apenas algumas dezenas delas. Mas Eliana Alves Cruz o faz com maestria, não se atendo apenas à fidelidade histórica. Como Marianno, escravizado que tece a mortalha de seu dono, Eliana constrói de modo complexo a trama, alinhavando fatos e reflexões, redimensionando o que à primeira vista parece ser apenas um romance histórico-policial.
Assim, o livro vai se desvendando ao longo das páginas e conquistando nossa admiração, enredando-nos à trama, via mortalha de Marianno.
Acabamos por ouvir múltiplas vozes. O pássaro Namuli Apalis, Mr. Toole, Umpulla, Nuno, Faruk, algumas do mundo dos vivos, outras do além. Pois essas últimas tem papel significativo tanto para a narrativa quanto para Muana, a heroína, em mais um resgate de algo tão caro às tradições africanas: a ancestralidade.
Um crime no Cais do Valongo? Não, o livro se chama O crime do Cais do Valongo..