Raphael Cavalcante 07/01/2015
Um relato nada bonito do flagelo da seca
Quando se pensa no cânone literário como o conjunto de obras válidas de uma determinada literatura, por vezes, corre-se o risco de deixar de lado obras ditas menores, que, se não são os maiores exemplos de plenitude estética, carregam outras facetas tão valorosas quanto.
"A Fome" é uma dessas obras que certamente não constarão nas listas dos 100 maiores romances brasileiros de todos os tempos, mas detentora de grande contribuição para a nossa literatura. Escrita em 1890 por Rodolfo Teófilo, farmacêutico e sanitarista radicado cearense, o livro narra todo o flagelo da seca que afetou o ceará entre os anos de 1877 e 1879, a maior que se tem relato. Cerca de 4% da população cearense foi ceifada naquele holocausto sertanejo. Toda essa sina é narrada neste romance de estética naturalista, considerado pioneiro no relato dessa temática.
Como se tornaria praxe em romances do gênero, "A Fome" enfoca a emigração de uma família de retirantes fugidos do Sertão insalubre em busca de melhores condições de vida em centros urbanos. Rodolfo Teófilo narra com riquezas de detalhes toda a sorte de infortúnios da jornada, bem como a difícil instalação da família de Manuel de Freitas em Fortaleza. Episódios de autofagia, envenenamento, canibalismo, violência de autoridades para com os retirantes, mortes por inanição são descritos de forma detalhada e documental, fazendo com que a leitura do livro seja extremamente angustiante. As páginas que relatam a morte por varíola de certa personagem é de fazer inveja a Lovecraft. A obra se caracteriza assim como documento precioso de uma época em que as políticas públicas, além de não resolver o problema dos desamparados, os empurravam mais rapidamente para a ruína. Era o caso dos retirantes que ao chegar em Fortaleza, em troca de uma ração mínima, eram obrigados a carregar pedras por quilômetros a fio.
Diante dos fatos, o romance é envolto por um sentimento fatalista, que pontua bem o teor daqueles anos. Segundo consta, Rachel de Queiroz, também cearense e autora de "O quinze, romance similar na temática da seca, afirmava que achava de mau gosto a obra de Rodolfo Teófilo. Ora, será que falar de forma branda da seca denotaria a real dimensão do drama dos retirantes como queria o autor? É provável que o tom bastante aberto de denuncismo tenha sido um dos responsáveis pela ocaso de "A Fome", reduzindo-o a elemento panfletário. Parece, no entanto, inquestionável que se a obra não possui grande apuro estético como "O quinze" e não é meritória de constar entre os 100 melhores, merece um lugar no rol daqueles livros que contribuíram efetivamente para melhor compreensão da realidade brasileira de ontem e de hoje.Votos de que o livro não fique novamente 30 anos fora de catálogo, como pode ser lido no posfácio escrito pelo jornalista Lira Neto.