Amanda 01/12/2018Ser mulher é uma luta sem fimMulheres poderosas sempre inspiraram medo. É assim desde os tempos mais remotos, e cada vez mais vemos surgir narrativas necessárias sobre o patriarcado, o machismo, a misoginia e a opressão, histórias e mitos construídos em volta da fragilidade e necessidade de proteção (de outros homens e de si mesmas) que as mulheres supostamente têm. Essas narrativas são necessárias porque é preciso desconstruir esse lugar comum ao qual nós, mulheres, fomos relegadas, sair dessa bolha de preconceito e ignorância e conquistar uma posição social igualitária, digna e justa. Nossa luta é infinita.
Eu tenho uma mania terrível de não ler sinopses. Escolho minhas leituras com base em informações mínimas e procuro saber sobre a proposta principal do livro... mas sinopses, não. No caso de Graça e Fúria, esse foi um ponto decisivo para me amarrar à história. Fica minha forte sugestão de pularem a sinopse e se entregarem à narrativa de forma despretensiosa e natural, porque a autora realmente sabe como surpreender o leitor. A sinopse acaba entregando muito do conteúdo e não sei se eu teria aproveitado Graça e Fúria da mesma forma já sabendo de algumas informações. Por esse motivo mesmo eu vou tentar falar o mínimo possível e me ater mais à uma análise crítica do livro do que à história contada.
“Não é uma escolha quando você não tem a liberdade de dizer não. Um ‘sim’ não tem nenhum valor quando é a única resposta que se pode dar!”
Serina e Nomi vivem em um mundo onde as mulheres não têm direitos e estão destinadas a serem subalternas em qualquer contexto. Proibidas de ler, de cortar os próprios cabelos, de ter uma profissão, de ter pensamento, voz, e, principalmente, de se insurgir contra essa realidade dura, lhes resta a resignação. Serina foi treinada desde sempre para ser Graça, uma das muitas mulheres do superior de Viridia. Pela primeira vez, o herdeiro escolherá suas Graças e Serina deseja fervorosamente ser escolhida. Enquanto vê nisso uma bênção, uma oportunidade de fugir da vida miserável que tem e cercar-se do luxo somente reservado à nobreza, Nomi sequer suporta a ideia de ver sua irmã subjugada, restrita a uma vida vazia em uma prisão palaciana, escrava de um homem.
As personagens são muito contrastantes, mas construídas de tal maneira que é muito difícil escolher uma favorita. Em certos momentos me peguei querendo logo pular para a parte de Nomi, já em outros a aflição do que estava acontecendo com Serina me enlouquecia. Ambas estão certas e erradas, são fortes e frágeis, espertas e ingênuas, cada qual a seu modo. Serina é correta, conformada, vaidosa, meiga, preocupada em servir e agradar. Já Nomi é um espírito livre, rebelde, impulsiva, intensa. Mas quem pode julgá-las por serem quem são em um mundo tão deturpado e cruel com as mulheres? A autora foi muito cuidadosa em dar vida às irmãs e cuidar de suas evoluções ao longo da narrativa. Os capítulos se dividem sob o ponto de vista de cada uma e a elas se ligam núcleos de personagens-chave para a história. A maioria delas é também muito bem construída, cheias de características pessoais e detalhes fundamentais para contextualizar e impulsionar a trama.
“Tudo naquele mundo, até as prisões, colocavam as mulheres umas contra as outras enquanto os homens só observavam.”
O livro flui muito bem, a leitura é fácil, rápida, bem adaptada para o público Young Adult, e tudo se conecta muito bem, ainda que nem sempre de forma muito natural. Acredito que justamente por se tratar de um livro jovem, a autora suavizou bastante algumas situações e procurou criar um ritmo narrativo cheio de ação, intrigas e revelações, o que funciona bem e o livro (infelizmente) termina num piscar de olhos. O clima da história é nervoso, angustiante, nos levando a todo momento da revolta ao receio pelo que vai acontecer em seguida. Banghart realmente sabe como conduzir uma narrativa.
O foco central, apesar de ser classificado como fantasia, é a questão social, a luta pela liberdade, a resistência feminina em variadas formas e nuances. Graça e Fúria claramente é uma releitura jovem e romantizada de O Conto da Aia, trazendo elementos mais modernos e uma trama mais palatável aos jovens leitores. Se por um lado a comparação é inevitável e repara-se na perda da complexidade da questão política e social que envolve o clássico da Atwood, e também na romantização desnecessária no contexto de opressão, por outro não posso deixar de perceber a importância de uma obra mais leve para chamar a atenção do público Young Adult para a temática, levá-los a um pensamento crítico condizente com a idade, mantendo-se na sua esfera de interesse. Serina e Nomi também são cativantes o suficiente para manter qualquer leitor vidrado na história até o final.
Para quem ainda não conhece a ficção especulativa mais densa, Graça e Fúria é uma boa porta de entrada. Aos fãs do gênero, essa é uma trama poderosa, atual, relevante.
Essenciais em qualquer tempo, mas especialmente nos dias de hoje em que os movimentos sociais estão sendo tão duramente rechaçados e as mulheres estão arriscadas a perder o pouco de visibilidade que foi adquirida com tanto esforço ao longo dos séculos, histórias sobre mulheres fortes, sobre empoderamento e resistência nunca devem sair da pauta. Devem, pelo contrário, ser lidas, relidas e sempre lembradas.
“ – Talvez nossas vidas possam ir além da sobrevivência um dia.”