Krishnamurti 23/08/2018
Como se constroem os homens...
“Memórias da infância em que eu morri”, é o livro de estreia do senhor Hugo Pascottini Pernet. O romance conta-nos, em primeira pessoa, a história de Hugo, um menino de apenas nove anos que de repente se vê ameaçado por uma grave e misteriosa doença. Muito bem; a proximidade da morte, ou o mistério em que a enfermidade é encerrada pelos próprios pais, ou o que é pior, a sensação da forte consciência de estarmos sós no mundo que acomete o menino, o levam a registrar seus dias, primeiro em “Fragmentos do diário”, depois com o agravar da doença, em “Fragmentos das fitas cassete”, onde grava mensagens sobretudo destinadas a sua mãe, e finalmente registra apenas, vejam bem, apenas, certos “fragmentos das gravações da mãe falando ao pai”. São justamente esses os capítulos que dividem a obra de Pernet, precedidos de um Prólogo e encerrada simplesmente com uma foto de um menino carequinha dentro de uma banheira, o que sugere-nos ser obra, senão de auto-ficção explícita, algo que medeia o “Entre realidade e invenção”, como está aposto ao título do romance na capa. Sobre isso, o escritor e crítico literário José Castello pergunta na orelha do volume: “Mas quem pode, sinceramente, dizer o que é a realidade? E quem pode aprisionar e domesticar a ideia da invenção, que é justamente uma abertura para o inesperado e o desconhecido?”
Bom, até aqui intuímos que teremos um “osso duro de roer” pela frente. Ocorre todavia uma outra questão que nos é lançada logo nos primeiros capítulos. Não é verossímil que um menino de 9 anos, em nosso tempo de games e futilidades de toda sorte, seja leitor compulsivo de Alberto Caeiro (um dos heterônimos de Fernando Pessoa). Estamos a nos ater à questão da verossimilhança externa – daquilo que seria aceito pelo senso comum, tido como possível, provável. Aprofundemos a questão: no universo literário, que para quem ainda não se deu conta é tido como arte, a criação é como um todo, a transfiguração do real. E como tal, não podemos deixar de referir a verossimilhança (do latim verisimilis, cujo sentido se atém a “provável”). Quando falamos em transfiguração do real, fazemos referência a um mundo imaginário, a algo criado pelo próprio artista. No entanto, não é porque a história é uma criação (romance) que ela não deve possuir uma lógica, uma equivalência com a verdade. A narrativa precisa ser constituída de um universo possível, no intuito de provocar no leitor a sensação de que algo pode realmente existir, acontecer. Assim, os fatos não precisam corresponder de forma exata ao universo exterior, mas necessariamente precisam ser verossímeis, semelhantes à realidade. Mas é justamente sob outro viés dessa mesma questão que a obra de Hugo Pascottini ganha foros de legitimidade porque o autor aposta na verossimilhança interna. Na coerência narrativa, ou seja, pela seqüência articulada dos fatos que por sua vez, vão nos mostrando que uma causa (um fato), desencadeia uma conseqüência, dando origem a novos fatos e assim sucessivamente, e isto muito habilmente sob a ótica de um menino com toda a sua carga de inocência e descoberta da difícil condição humana. Daí percebermos o sentido da epígrafe que abre o volume, que adivinhem de quem é? Fernando Pessoa: “A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos não é o que vemos, senão o que somos”. E a isto, e ante a narrativa que vai se desenvolvendo para o leitor é que puxamos o fio da coisa, ou o título dessa resenha. Como se constroem os homens? Observamos as reações do menino ante as dificuldades que se alongam desde a (in)tolerância dos outros frente a sua inclinação natural para a literatura (tanto para ler como para escrever), a falta de abertura para uma vida mais transparente que os próprios pais impõem, as dores insuportáveis de exames para retirada de sangue, as medicações pesadas que o enfraquecem e mesmo o levam a delírios, as discussões familiares, a imposição da religião (que já matou tanta gente no mundo, e continua matando). A certa altura o menino escreve:
“Os adultos são muito estranhos: acreditam no que inventam. Pior, inventam qualquer coisa em que precisam acreditar”. P.26, ou;
“Não suporto ficar repetindo ave-maria, ave-maria, ave-maria... para um céu inventado”. P.35.
E talvez a mais dolorosa descoberta. O desamor, a falta de apoio incondicional à plena formação de nossos próprios filhos, metaforizada na figura de uma mãe, dada a futilidades de “revistas de fofoca” e que se fecha, ante a doença do filho, num quadro depressivo, justamente quando tal doença (do filho, lógico). deveria ser a força maior para a superação. Este o lento tomar de consciência de Huguinho. Assim vamos construindo homens. Pena que nem todos tenham a inclinação natural daquela criança para um olhar sereno ante o sofrimento, talvez a poesia de Fernando Pessoa tenha contribuído para tanto... quem saberá dizer? O que a realidade nos esfrega na cara, dia a dia, é o perpetuar de criaturas amargas, indiferentes, irresponsáveis, ora vítimas, ora carrascos dos outros. E para não dar spoiler na obra, transcrevemos um trecho para reflexão (não sem antes dizer que Spoiler é quando revelamos fatos a respeito do conteúdo do livro. Numa tradução livre, é o famoso termo “estraga-prazeres”). Confiram o desfecho surpreendente da narrativa no livro.
TRECHO: “Sabe de uma coisa? Acho que vou desistir de tentar falar com a mamãe. Vou desistir de buscar uma explicação pro fato de ela sumir nesse momento da minha vida em que mais preciso de apoio, por isso vou continuar fazendo gravações só para você Clara. Você deve se perguntar por que comecei a gravar áudios pra você se passamos o dia juntos. Eu sei que você está sempre perto de mim e eu poderia falar diretamente a você, mas a verdade é que não, não poderia, não conseguiria, preciso desse gravador, talvez para poder dizer coisas que não conseguiria dizer frente a frente ou que ainda não conheço. Porque tenho certeza que me ouve, que está do meu lado, desde a primeira vez que te vi, desde a primeira vez que conversamos, na recepção do hospital, quando eu estava esperando pra começar a minha segunda sessão de quimioterapia, bem cedo, ainda meio sonolento, sem saber distinguir o sonho da realidade. Em casa, no meu quarto, eu já não faço outra coisa senão dormir o dia todo, às vezes nem sei se acordei ou continuo dormindo, acompanhado por essas imagens que parecem uma praga, se espalham sem rumo e só podem ser vistas dentro do meu corpo”. P. 134.
Livro: “Memórias da infância em que eu morri” [Entre realidade e invenção I]– Romance de Hugo Pascottini Pernet - Editora Penalux, Guaratinguetá- SP, 2018, 173 p.
ISBN 978-85-5833-343-6
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