Nascida Na Independência

Nascida Na Independência Lília Figueiredo




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Krishnamurti 29/08/2018

Nascida na Independência
O romance histórico, é gênero no qual a narrativa se mescla com fatos históricos, é sabido. Todavia, nem sempre aparecem , há momentos em que se expõem com mais freqüência, noutros quase desaparecem do cenário literário. São sempre bem-vindos porque trazem à baila o velho e sempre benéfico diálogo entre Literatura e História. Seja porque fatos e acontecimentos demandam revisitação, seja para revelar “construções desaparecidas” – ou desconhecidas, silêncios impostos, o não revelado de vidas pretéritas. O fato inconteste em História – nem sempre aceito sem controvérsias -, é que a realidade carrega em si o descompasso entre o tempo passado e a capacidade da história ser reconstituída. Esta fissura causa uma estranha abertura entre cenário e atores – entre o passado e os sujeitos. E é exatamente esta abertura o horizonte de sentidos que são os sons e as cores da possibilidade de mudança do entendimento, pois carregam um amplo espectro de subjetividades e desejos que a Literatura pode propiciar.
Daí advém, penso - e já escrevi sobre -, o promissor diálogo entre a História e a Literatura. É caminho que se percorre nas trilhas do imaginário, posto ser este um sistema produtor de ideias que suporta, na sua feitura, as duas formas de apreensão do mundo: a racional e conceitual, que forma o conhecimento científico, e a das sensibilidades e emoções, que correspondem ao conhecimento sensível. O imaginário é sistema de representações sobre o mundo, que se coloca no lugar da realidade, sem com ela se confundir, tem nela seu referente.
Nascida da Independência, romance da escritora Lilia Figueiredo, embora não tenha o desejo precípuo de revisitação de nossa História, narra a vida de Liége, uma brasileira nascida justamente no dia em que a historiografia oficial convencionou datar de dia da “Independência do Brasil”, 7 de setembro de 1822, e olhe que já começamos com os equívocos de data da própria História . Além da dificuldade de gênero (nascer mulher), condição preterida até mesmo pelos pais, a trama revela as imposições da sociedade patriarcal, machista, e reacionária quanto a qualquer desejo de emancipação feminina. Ocorre que, é aí o diferencial do livro e da vida humana, ao humano foi dado pensar e agir. E em assim sendo, reverter situações, por pior que elas sejam. Pensar. É a tônica. Mas deixemos essas considerações de caráter filosófico de lado, porque ainda hoje, como em 1822, há, como já se disse, controvérsias. Ao enredo:
Líege, nasce sob o manto de um segredo brutal. É filha de Elvira com Anthony, irmão de Leopoldo Ranwez, casado com Elvira na base de imposições paternal. Já se vê que um arranjo desses sempre acaba em traumas terríveis assim. E o leitor vai aos poucos, e muito sutilmente se ambientando historicamente na conjuntura do conturbado início de século XIX no Brasil, quando fugindo das tropas de Napoleão (1808), a corte portuguesa embarca para o Brasil sob a tutela inglesa, que não se restringe à fuga. Demora-se aqui por meros interesses comerciais e estratégicos. Tão poderosos que conseguem até a permissão para a construção de templos anglicanos – Trecho da narrativa que se passa por volta de 1829.
“O pai de John morava no Brasil desde a mudança da Coroa portuguesa para a colônia, incumbido pessoalmente pelo rei da Inglaterra de acompanhar Dom João nas questões internacionais e mesmo em assuntos domésticos daquele escorregadio regente. Era necessário alguém de confiança no coração da corte palaciana, e os Nedercliff tinham uma longa tradição em serviços prestados às Suas Majestades britânicas”. P. 39.

E é assim, pela influência do tio que é médico (em verdade pai biológico), que Liége cresce e acaba por se deslumbrar com a medicina. Encanta-se e deixa os leitores entreverem o estágio e avanços da medicina da época, como a invenção do estetoscópio, o uso do Clorofórmio como anestésico, da tintura de iodo como cicatrizante e a conclusão afinal de que as sangrias – tão comuns no século XVIII - , não eram em verdade, tratamento benéfico ao corpo humano..... A bem engendrada trama ficcional que a autora tece vai também nos mostrando os intestinos de uma sociedade que, se por um lado, exaltava os valores da burguesia local de mãos dadas com a importada da Europa no rastro da vinda da família real, por outro tratava os escravos e descendentes como seres igualados à animalidade pura e simples.
Liége revela-se desde cedo uma “criança curiosa”, o que, dada a sua condição de mulher, em tal ambiente, “limitava mesquinhamente a sua fome de conhecimento”. Aos poucos vai descobrindo as coisas da vida. Entre elas como se morria tanto, e tão cedo em razão de doenças que a medicina da época nem desconfiava diagnósticos, que dirá curas; conhece o brutal poder das intrigas humanas; é amparada pela amizade sincera e filial, daqueles seres igualados a animais inferiores que eram os escravos – em verdade seu verdadeiro lastro de humanidade provém daí, seu sentido de justiça se desenvolve nesta convivência. Conhece muito pouco e da forma que lhe é possível assuntos que a inquietam. E acaba que o tal do amor, também vem lhe bater às portas, na figura de John, que afinal lhe surge vigorosa, depois de tantos encontros e desencontros, mistérios, suspense e paixão... uma teia bem urdida a vida de Liége, como de resto, a de todo ser humano.
A narradora-autora tem a coragem de desvelar a sensualidade humana, pela ótica feminina. Interessante notar isto em um romance ambientado no século XIX, coragem afirmamos, porque de certo, a sensualidade sempre encoberta (e hoje tão deturpada para caminhos de perversão), sempre foi sentida da mesma forma por eras e eras. Por ambos os sexos, por mais que se lhe cubram com mitos de Adão e Eva, e paraíso e maçã e serpente! Veja-se o trecho de suave sensualidade:
“O vulto dele na parede se aproximou, e ela se virou.
As sombras se sobrepuseram.
Era para ser apenas um roçar de lábios. Depois, um enlace na cintura, no pescoço. Então eles se conteriam, parariam de retribuir. No enlevo, mechas escuras se soltaram do arranjo, e ele tentou aparar as ondas sedosas; dedos delicados despentearam o louro de trigo maduro. Isto está muito errado. As bocas não se contentaram com a carícia leve e exigiram mais. Isto está muito certo. Estavam sentados na palha? Pressionou-a ou foi puxado? A saia subiu preciosos centímetros, revelando parte da perna nua; assim ficou, e a mão entendeu o convite para trilhar a senda. Quem inventou o uso de casaca no verão dos trópicos? Quem planejou aquelas roupas íntimas femininas? Havia muito pano e pressa entre eles, aos poucos foram sendo afastados e atendidos, o suficiente para aplacar a urgência. Ele aceitou o que lhe ofereceu, ela entregou o que lhe pediu”. p. 25.

A respeito de sensualidade e sexualidade a narrativa é bastante esclarecedora quanto à mentalidade de então, onde era comum, pais e homens poderosos fazerem uso sexual de outras mulheres (negras claro) em total desfrute, a despeito da tão ostentada “moralidade”, o que deixava as mulheres, sobretudo as jovens, a mercê da mais completa ignorância no assunto. Memorável a cena de uma relação sexual desastrada entre uma virgem e seu marido na primeira noite de casados, e narrada no capítulo 19. A ignorância mãe de todos os despautérios (insegurança, medo, ciúmes, desespero, mal-entendidos etc., etc., e etc.), quase acaba com o casório.
A ficção estimula o conhecimento através da experiência com outros mundos, outras épocas, outras gerações a partir de situações complexas e delicadas, (como a exposta no romance), através das quais se fomenta a identificação do leitor com as personagens envolvidas. Constitui valioso elemento para todos nós viventes aqui e agora, que teremos inevitavelmente de enfrentar ao longo de nossas vidas, uma série de questões éticas e morais, cujas respostas não se encontram em manuais e muito menos em literatura de auto-ajuda (hoje tão pródiga), e que prefiro denominar literatura piegas.
Mas Liége é também mulher obstinada, em que pese a quase impossibilidade de então. Ela jurara para si mesmo desde os 13 anos de idade alcançar seu objetivo (Independência?) na vida. Ser médica, aí sua luta maior... A verdade da ficção literária não está em revelar a existência real de personagens e fatos narrados, mas em possibilitar a leitura de questões em jogo numa dada temporalidade, existiram enquanto possibilidade, como personalidades que retratam sensibilidades. São reais na “verdade do simbólico” que expressam. Personagens dotados de realidade porque encarnam defeitos e virtudes humanos, porque nos falam do absurdo da existência, das misérias e das conquistas gratificantes da vida. Porque falam afinal das coisas para além da moral e das normas, para além do confessável, por exemplo, o “ser-precisamente-assim das circunstâncias”, que György Lukács menciona.
No entanto, - e com que prazer lemos -, as “Notas finais”. A autora nos informa que Maria Augusta Generoso Estrela (1860 -1946), aos 16 anos vendo-se impedida por lei de estudar medicina no Brasil, partiu para Nova York em 1875. Foi a primeira mulher brasileira a se formar em medicina, em 1881, pelo New York Medical College and Hospital for Women, em Nova YorK, e que a gaúcha Rita Lobato Velho Lopes (1866-1954), recebeu seu diploma em medicina pela Faculdade de Medicina da Bahia em 1887. Um ano depois, em 1888, foi a vez da Gaucha Ermelinda Lopes de Vasconcelos. Vemos portanto que essa ficção é inspirada em personagens que existiram de fato, e venceram as barreiras que o tempo lhes impôs. O livro de Lilia Figueiredo, que também é médica, é, portanto, uma homenagem à história dessas pioneiras da medicina Brasileira. Debaixo dessas e outras questões que o tempo ainda não apagou (e se refletirmos há muitos resquícios de tudo isso ainda nos dias que correm), é que vale embarcar nessa viagem no tempo proposta pela senhora Lília Figueiredo.
Livro: “Nascida na Independência” – Romance histórico de Lília Figueiredo - Editora Penalux, Guaratinguetá - SP, 2018, 256 p.
ISBN 978-85-5833-365-8
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http://editorapenalux.com.br/loja/nascida-na-independencia
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