Claire Scorzi 19/04/2009
Exilados no inferno
Todas as profissões têm seus traidores, todas têm seus anjos. Em "A Conturbada História das Bibliotecas" de Mathew Battles, leio sobre os bibliotecários alemães que, durante o período nazista, colaboraram com o sistema (inclusive compilando listas de autores que deveriam ser censurados); e também leio sobre os heróis anônimos, como o bibliotecário Hermann Kruk que, entre 1942 e 1943, administrou uma biblioteca no gueto de Vilna. Conta-nos Battles:
Enquanto lutavam para organizar um catálogo de fichas, Kruk e seus colegas puderam encontrar momentos de paz, e até mesmo de alegria, em meio aos livros. Em seu relatório, Kruk tentou captar esses momentos.(...)O que emerge desses dados é um retrato daquilo que a leitura significou para os membros de uma comunidade exilada no inferno.( A Conturbada História das Bibliotecas, p. 175).
"Exilada no inferno" diz o autor. E prossegue contando-nos como, mesmo aos maiores horrores dos expurgos e execuções dos judeus em Vilna, a biblioteca registrou altos índices de freqüentação e de empréstimo de livros. Maltratados, mal encadernados, gastos, os volumes foram, para seus sofridos e constantemente aterrorizados leitores do gueto, aquilo que o próprio Kruk chamou, num de seus registros, um milagre.
O milagre do livro. Não pude deixar de me maravilhar e emocionar lendo essa passagem (p.174-179). A emoção decerto tem algo a ver com o que os livros foram para mim tantas vezes, e de modo pungente na infância. É verdade que pouco há a comparar: a garotinha que eu fui, com um pai alcoólatra e uma mãe amorosa mas que trabalhava muito, encontrava seu refúgio nos livros, mas nem de longe sofreu como essas pessoas desconhecidas de um país distante. Ainda assim, ler sobre a biblioteca de Vilna e seus usuários não deixou de estabelecer um laço entre nós: nosso amor comum, nossa gratidão, nossa rica alegria trazidas por - livros.