João 23/10/2020
Obra reunida (volume 3) – Lima Barreto.
No volume 3 da "Obra reunida" de Lima Barreto, editada pela Nova Fronteira, estão condensadas algumas das sátiras e das crônicas escritas pelo escritor carioca ao longo de sua carreira literária e jornalística.
As famosas novelas “Os Bruzundangas” e “Aventuras do dr. Bogoloff”, que se enquadram perfeitamente no gênero da sátira, dada a sua capacidade crítica e o tom burlesco com que encaram as instituições e os costumes da época, estão presentes nesta “Obra reunida”.
Em “Coisas do Reino do Jambon” encontramos uma série de crônicas que segue a formatação geral presente em “Os Bruzundangas”, isto é, estão dispostas individualmente, mas sem perder no seu conjunto o aspecto de capítulos de um todo voltado a retratar satiricamente as instituições e os costumes da época.
Na coletânea “Coisas do Reino de Jambon” o bom e velho Lima Barreto mostra mais uma vez a sua presença observadora e reflexiva acerca das coisas que se manifestam na vida pública e social do Rio de Janeiro, que no início do século XX constituía a capital política do país e o centro cultural da República.
Suas crônicas revelam um escritor atento e interessado em todos os setores da sociedade que o cerca, sobretudo nas questões administrativas que dizem respeito ao interesse público. Lança mão de comentários bem arrazoados sobre os mais variados atos praticados pelo governo, não sem lançar poderosas críticas embebidas em sarcasmo quando assim se faz ocasião.
As crônicas tratam desde “Festas nacionais”, “Coisas administrativas”, “Voto feminino” até “Como extinguir os gafanhotos” e “A lagarta rosada”, mostrando as incursões do autor pelos mais variados campos do conhecimento, não sem algum grau de erudição e de saber enciclopédico acerca dos temas.
Ainda em “Reino do Jambon” são belas e curiosas as crônicas reunidas sob a epígrafe “Mágoas e Sonhos de um Povo”, que giram em torno de histórias do folclore brasileiro e das crenças, rezas e superstições do nosso povo.
A Obra reunida ainda traz outra coletânea de crônicas sob o título de “Crônicas seletas”.
Nesse segundo apanhado dos escritos de Lima Barreto, o tom das crônicas parece mudar ligeiramente, revelando um escritor menos sarcástico e debochado, cujo temperamento parece mostrar-se mais sisudo acerca dos temas então abordados, mas sem perder a capacidade crítica.
Em suas "Crônicas seletas" não há como deixar de admirar o perfil independente com que Lima Barreto enfrenta os temas e as pessoas destinatárias de seus textos. Seus escritos revelam um misto de crônica social e sátira, mas sem perder o aspecto de carta aberta dirigida às autoridades públicas.
Lima Barreto é um sujeito bem-intencionado. É o tipo de escritor independente, sem papas na língua, capaz de denunciar toda a “bruzundanga” que impede o avanço cultural e político do país, sem, no entanto, perder a graça narrativa e o poder do argumento que lhe são próprios.
A literatura e o jornalismo brasileiro devem muito a Lima Barreto. Quanta falta não faz um jornalista independente, perspicaz, erudito e com poder de argumentos para denunciar os males que o nosso país atualmente atravessa. Carecemos mais do que nunca de um escritor “espinho na carne” da envergadura de Lima Barreto.
Enche-me de consolo, porém, saber que seus escritos ainda reverberam, e que o escritor carioca ainda fala através deles, apontando-nos os caminhos possíveis para alcançarmos a "felicidade dos povos" por meio da política e da arte.
Lima Barreto foi um escritor triste e, conforme esse belo trecho revela, a sua literatura transparece esse sentimento:
“Não fora a grave dor doméstica que me ensombra a existência, eu me daria por verdadeiramente feliz e suficientemente experimentado. Tendo passado por diversos meios os mais desencontrados possíveis, eu me julgo conhecedor bastante das coisas deste mundo, para, com elementos da vida comum, organizar uma outra de meus sonhos, com a qual minore, só no criá-la, a mágoa eterna e impagável que haja talvez em mim e me turve as alegrias íntimas”.
Por fim, o volume 3 da Obra reunida traz a novela intitulada “O Subterrâneo do Morro do Castelo” que constitui um misto de ficção e de matéria jornalística. A narrativa trata das escavações realizadas em 1905 no Morro do Castelo (cidade do Rio de Janeiro) para exploração do tesouro supostamente guardado em suas galerias subterrâneas construídas pelos jesuítas durante o século XVIII. A história ainda ganha contornos românticos e trágicos quando a narrativa trata da paixão arrebatadora que envolve um dos padres jesuítas daquele tempo e uma condessa italiana que teria ido parar na incipiente cidade do Rio de Janeiro após ser raptada de sua terra natal. A ficção empresta maravilhosamente tons de aventura e de mistério aos fatos mais ou menos reais. Vale lembrar que o Morro do Castelo foi completamente varrido do Rio de Janeiro em 1922 por força de duvidosos interesses políticos, perdendo-se com ele importantes aspectos da história colonial brasileira. Não obstante, a lenda do Morro do Castelo nunca se perdeu e continua a povoar o imaginário nacional.
Boas leituras!