Arsenio Meira 09/12/2013
Martírio Íntimo
Graham Greene, como deixei registrado durante a leitura deste belo romance (comovente também) deu vida a um personagem genial, o padre sem nome, que protagoniza percorrendo martírio de sua própria consciência, angustiado com seus próprios pecados.
Até aí tudo bem, e o que soa como bula lida e relida, de lugar-comum não tem nada. Só um registro: há um ponto de encontro entre esse romance e o romance do escritor francês Geroge Bernanos (Diário de um Pároco de Aldeia): os pecados do padre criado por Greene o desencontraram de Deus. Ele mais teme do que crê. O temor da culpa fragiliza e lhe confere humanidade e a solidão desse homem é palpável. A obra de Bernanos, ou melhor, o protagonista segue a mesma trilha de dor, temor e expiação. Culpabilidade em grau máximo.
Os temas que norteiam a trama (política e religião) compõem uma mistura conflituosa, neste caso específico: o Governo de uma província no sul do México, no período anti-clerical dos anos 30, tenta elidir o catolicismo e seus pregadores. Eliminar. Varrer do Mapa.
Um policial inflexível, movido pelas perigosas e nefastas ideias de revolução social e de supressão de uma religião que ele enxerga como anestesiante, persegue o último padre, esse padre criado por Greene arruinado por seus dois pecados, o alcool e uma filha concebida numa noite de fraqueza. O fervor e o fanatismo do perseguidor nascem na ideologia; a dúvida e a falibilidade do perseguido germinam em meio à religião.
Eis aqui a história de uma fuga para o nada. Como a religião que cultiva, a sobrevivência só é possível com a ingestão cavalar de generosas doses whisky, uma vez que os seus pecados o desencontraram de Deus. Ele mais teme do que crê no alto. Receia a morte como momento de danação e persevera na vida pelo inércia do ofício religioso e pelo pavor de prestar contas a Deus. O padre, a quem Greene não dá nome, não tem pouso em que possa descansar: na terra, tornou-se indesejado, já que o policial ameaça de morte os que souberem de seu paradeiro e não o revelarem; no céu, o espera a punição.
Esse padre criado por Greene é um personagem interessantíssimo; complexo, profundo, extremamente cativante. O romancista inglês o constrói com a ambigüidade necessária: não dilui totalmente um certo tom crítico, mas lhe dá humanidade. O padre não é um mero violador de uma religião perfeita e sagrada, que por isso deve pagar caro. O autor não o condena, da mesma maneira que não idealiza o catolicismo ao qual se havia convertido anos antes.
O escritor britânico é um mestre na criação de cenas envolventes, o que talvez explique sua incomum popularidade para um grande escritor. O livro, embora curto, tem inúmeras passagens memoráveis. Uma é o cerco do vilarejo em que mora a filha do padre. Além do encontro dilacerante e passional com sua criação, o padre é inquirido pelo policial pela primeira vez, mas não é identificado. A impotência do padre comove.
Graham Greene domina com tanto desembaraço as técnicas de criação, que se permite criar personagens e tramas secundárias que não desenvolve, apesar de despertar a curiosidade do leitor. Percebe-se que ele não foi um escritor ousado estilisticamente. Mas escreveu com sofisticação, seja pela agudeza com que dissecou a psicologia torturada de seu protagonista, seja pela qualidade das metáforas que criou.
E foi implacável no registro etnocêntrico: o México de Greene não é um país; é o inferno. Corrupto, paupérrimo, sujo, povoado por sujeitos ignorantes e doentes. O clima e a paisagem são inóspitas. A beleza, inexistente. O romance não pedia mesmo descrições de flores, formas e losangos. O México é personificado na figura do mestiço que engana e denuncia o padre: é um sujeito ardiloso, mesquinho, sem dentes e com febre. Um tipo desses prolifera feito estafilococos: seja no México, nos Estados Unidos, aqui mesmo ou nos estepes siberianos, enfim, é universal.
Ao leitor, eis a promessa de um grande romance de Graham Greene.