Stephane.Grizafis 20/04/2024
Livro complexo, profundo e ácido
Confesso que foi uma leitura um pouco difícil, mesmo já tendo experiência com leitura de clássicos. A escrita do Machado em si, e mais ainda, os devaneios de Brás Cubas através dessa escrita tornam a leitura complexa. Não somente pela assimilação do texto , mas pela elaboração das reflexões trazidas através dele, que podem ser facilmente perdidas em um leitura desatenta. Precisa ter certa bagagem, não só literária, como também reflexiva, para compreender muitas colocações do livro.
Além disso, Machado trás - através de Cubas - inúmeras referências à escritores, filósofos e artistas ao longo da narrativa para corroborar suas ideias. Assim sendo, seria preciso não somente conhecer o referido, como também entender sua obra/ filosofia para adentrar profundamente aos pensamentos de Cubas. Por esse motivos e pelos demais, acredito que a maioria não consegue absorver toda a genialidade desse livro de primeira, e me incluo nisso. Tenho certeza que este é o tipo de livro que trás ainda mais camadas de contemplação a cada releitura.
Mesmo assim, é incrível quantas reflexões me trouxe esse livro nesse primeiro contato: uma crítica sagaz e cínica à sociedade burguesa daquela época, demonstrada sob a perspectiva de vida de um indivíduo beneficiário desse sistema, símbolo da mediocridade do qual advém, Cubas é a personificação da elite de antigamente que até hoje tem seus descendentes no alto da pirâmide social. Uma sociedade escravocrata, que reduzia a humanidade de negros somente à condição de servilidade. Em muitos momento me senti enjoada e chocada com a normalidade com que a crueldade da escravidão era intrínseca ao cotidiano daquela época.
Também o livro retrata vários comportamento machistas e misóginos; estes, imagino que não tenham sido trazidos propositalmente pelo autor com a mesma intenção de crítica com que trouxe o assunto da escravidão, mas ainda sim servem de objeto de estudo, onde podemos analisar como mulheres eram vistas naquela época. Além disso, também conseguimos identificar comportamentos elitistas e capacitistas. O PURO SUCO DO CHORUME rsrs
Todas essas questões nos mostram como a sociedade daquela época se apresentava e como esses aspectos que hoje consideramos absurdos, eram ?normais?.
Além da crítica afiada ao sistema, o livro também traz reflexões ácidas à nós em nossa individualidade sem nenhum temor, afinal, Cubas já está morto e não liga para o que o leitor pensa. Aqui é onde o livro mais brilhou para mim; muito embora Cubas seja um homem miserável , que nasceu em berço esplêndido e nunca precisou nem quis arregaçar as mangas e correr atrás de algo que desse sentido à sua existência, e cuja maior parte de suas decisões foram tomadas por outros, pautadas no impacto que haveria sob sua reputação e status, demonstrando a pequenez daquele homem, alheio a própria vida;exercendo apenas o papel mediano de cidadão que era lhe cabido, não aspirando projeções de vida, embora tivesse condições financeiras para obtê-las, nem suplicando seus amores, que deixara escapar de suas mãos, além de não realizar nenhum bem social, visto que não possuía ideais altruístas e prezava apenas pela própria comodidade, mesmo que essa comodidade fosse deveras desconfortável; não deixando nenhum legado de sua caminhada, além de seus remorsos e receios que teve em vida. Ainda assim, Cubas teve a ?redenção? de sua miséria após sua morte, ao se debruçar sobre os acontecimentos de sua vida, incitando a qualquer um com a mente aberta a questionar suas aspirações, temores e desejos em vida e, em contemplação trazendo a tona segredos de nossa própria humanidade.
Segredos esses que o leitor tem a missão de desvendar, pois muito embora Cubas seja direto e escrachado em certos capítulos, onde ?esfrega na cara? do leitor certas verdades ou enumera em sentenças claras sua máximas, em outros momentos, a sutileza de suas reflexões pode parecer enigmática se não lida com devida atenção, existindo muitas epifanias guardadas nas entrelinhas.
Porém, o livro também teve, para mim, certas partes cansativas. Embora Brás compensasse a narrativa de sua vida enfadonha com a honestidade que descrevia sua penúria, muitas vezes o livro se tornou maçante pra mim. Como já citado, pela narrativa da vivência enfadonha e sem propósito de Cubas, que me fazia não ter muita empatia pelo personagem até metade do livro, como também pelas muitas divagações. Como o próprio Cubas menciona no capítulo 71 - embora se suprima logo na capítulo posterior alegando que não quer que soe como despropósito rsrs - o livro ?é como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem..?. Mesmo que isso não possa ser considerado um ?defeito? considerando que Cubas não tem razão alguma para ter pressa, isso se mostrou um empecilho para minha mente apressada.
Porém, esses empecilhos eram sobrepujados pelo brilhantismo da escrita de Machado de Assis que, através da metalinguagem, utiliza-se de capítulos para advertir o leitor sobre a experiência de leitura, sobre sua própria escrita ou sobre a dedução das interpretações do leitor, sempre quebrando a 4ª parede com comentários de sarcásticos sobre todos os elementos: o livro, o escritor, o leitor, além de ser bem humorado e criativo, moldando o livro como se fosse seu próprio universo: dobrando-o, virando-o, escancarando as ideias, resguardando os mistérios, falando disso, daquilo ou de absolutamente nada, criando capítulos profundos e outros apenas para repousar sua consciência, repetir-se ou somente atestar sua inutilidade.
Eu não poderia deixar de resenhar esse livro tão maravilhoso que é ?Memórias Póstumas de Brás Cubas?, mesmo tendo a certeza que ainda não o consigo compreender em sua totalidade, pois a obra me trouxe muitas reflexões. Quero contradizer Brás em sua última frase, pois ao me iluminar sobre a miséria humana, apesar de compreendê- la e até endossá-la, me sinto impulsionada a buscar mais do que um legado de miséria, mesmo que estejamos destinados a sermos consumidos pelos anos. Como disse Cubas ?Matamos o tempo; o tempo nos enterra?. Irei me aproveitar dele enquanto ele ainda está jogando terra no caixão.