Amanda 21/01/2021Marco literário e cultural brasileiroNão há muito o que se falar sobre um clássico que já foi lido e relido por várias gerações. Para ser honesta, sequer é fácil expor em uma simples resenha a grandiosidade atingida por Machado de Assis em um livro que seria eternizado no Brasil e no mundo afora como um dos magnus opus literários dos últimos séculos. E tudo isso ainda é muito pouco para exprimir a experiência de ler este autor! Machado observa a sociedade brasileira de sua época sob a ótica de um defunto - não um autor defunto, mas um defunto autor -, o próprio Brás Cubas, e dali começa a desfilar críticas em série sobre o que observava, tendo como focos de destaque a escravidão (lembrando aqui a ascendência escrava e absolutamente negra de Machado); a indolência e o ócio da burguesia, que nada sabia fazer e só colhia os louros do trabalho servil; as relações apáticas, fúteis; a ingratidão; e a moral extremamente questionável dos mais moralistas da sociedade conservadora brasileira.
Considerando que Machado de Assis foi um dos maiores expoentes do Realismo no Brasil, sendo apontado como o ponto de virada definitivo do Romantismo (Parnasianismo, Naturalismo etc.) ao Realismo, nota-se diversas críticas intrínsecas também ao movimento romântico, como a afetação e a supervalorização de sentimentos, a paixão eufórica que logo se transforma em tédio. Pode-se dizer, então, que Memórias Póstumas constitui também verdadeiro pilar de resistência ao velho movimento literário que, ainda àquela época, tinha muitos adeptos tanto entre escritores (sendo José de Alencar, escravagista burguês, o principal nome do movimento) e leitores.
Ao que diz respeito às críticas tecidas por Machado de Assis neste clássico, há de se ressaltar que o autor também subverte a "ordem natural" das coisas - uma grande inovação para aquele período -, começando o livro de trás para frente e rebobinando os eventos até chegar novamente ao ponto de partida. E, mais ainda, diferentemente de outros autores que já àquele momento expunham suas críticas e descontentamentos com a Velha República e os dogmas da burguesia (como Lima Barreto, sempre ácido em seus escritos), Machado decide escrever sobre a classe dominante partindo dela mesma, de modo extremamente elegante e sagaz. Utiliza, então, de meios como a ironia (traço marcante do autor) e a hipérbole para trazer à baila as principais questões que envolviam a burguesia brasileira: o nada.
Aos leitores que se aventurarem por Memórias Póstumas de Brás Cubas, tenham ciência que o sentimento de vazio na leitura é inegável. A bem da verdade, nada acontece: assim era a classe abastada. Esse sentimento de sempre aguardar por um clímax que nunca chega é uma sacada fantástica para prender o leitor até o último momento, demonstrando a falha do sistema de dentro dele mesmo. Machado aponta justamente existências que se fincam no mais absoluto ócio, em realizações vazias e privilegiadas, sem esforço, sem dedicação e sem glória. Tudo no trabalho de Machado é proposital e soberbo, desde a escolha do eu-lírico, à temática e à própria escrita, com demasiados capítulos - alguns inúteis, segundo o próprio defunto autor -, até mesmo a disposição e estrutura do livro devem ser observadas. Todos os elementos convergem e fundamentam as críticas que Machado tem por objetivo expor.
No mais, resta apontar que, para os que não têm grande contato ou experiência com clássicos brasileiros ou com Machado, a leitura pode ser demorada e um tanto quanto rebuscada, remetendo a um português já, para nós, bastante arcaico. Mas não há como ler Machado de Assis de forma simplificada: vale o esforço de entrar em uma das maiores mentes que a nossa literatura já produziu.