Crônicas da guerra na Itália

Crônicas da guerra na Itália Rubem Braga




Resenhas - Crônicas da guerra na Itália


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Ana Seerig 01/06/2022

Uma leitura necessária
"A FEB era bem um resumo do povo do Brasil, não só porque tinha soldados de todos os seus Estados e de todas as classe sociais e níveis de cultura, como porque levava todos os seus defeitos e improvisações, todas as suas incoerências e mitos, todas as falhas e virtudes desse povo." Foi isso que Rubem Braga escreveu em 1969 para uma reportagem da revista Realidade sobre os 25 anos do fim da Segunda Guerra Mundial. No mesmo texto, ele não esqueceu de ressaltar que 'não mandamos à Itália 25.334 anjos em 1944. A nossa tropa, como toda tropa de ocupação em país estrangeiro, e mesmo em seu próprio país, praticou abusos e crimes."

Esse texto faz parte da republicação das crônicas que Braga escreveu quando foi correspondente do Diário Carioca. A primeira edição se chamava "Com a FEB na Itália". Em 1985 o autor republicou a coletânea com o título "Crônicas da guerra na Itália" e reuniu às crônicas reportagens e outros textos publicados depois sobre o assunto - como a da revista Realidade, que o levou à Itália e o fez rever cenários de quando foi correspondente. Há algumas notas, a maioria das quais feita para nos lembrar de que seus textos passaram pela censura antes de chegar às páginas do jornal - isso quando não eram eliminados por completo.

As primeiras crônicas retratam a viagem dos pracinhas à Europa. Braga viajou no mesmo navio que eles e registrou detalhes do trajeto. O texto final do período narra a aventura pela tentativa de presenciar uma cidade recebendo a notícia da paz. Até então, os correspondentes chegavam atrás dos soldados, e, naquele momento, Braga e seus companheiros queriam chegar antes deles. No meio disso, temos textos preenchidos de nomes e endereços, já que o cronista queria registrar heróis e histórias, além de fazer seu papel de correspondente da maneira mais literal possível e citar nomes de familiares para registrar a saudade que os soldados sentiam de suas famílias - já que os correios trabalhavam de forma lenta para os dois lados.

Braga é conhecido por crônicas poéticas como "O conde e o passarinho", mas ao meu ver os textos originados na Itália são muito mais fortes e significativos - e justamente por isso deveriam estar nas salas de aula. Uma coisa é estudar a Segunda Guerra apenas com a relação Eixo x Aliados. Outra coisa é ver pernambucanos, mineiros, cariocas, gaúchos, maranhenses, entre outros; de cidades grandes e pequenas; com as mais diferentes profissões; sofrendo com os extremos que só uma guerra apresenta.

Braga registra o rendimento de alemães pelos mais diferentes motivos: fome, cansaço e/ou falta de atendimento médico. Ele menciona o medo que tais tinham de serem acusados de deserção e os inúmeros pedidos para serem registrados como prisioneiros. O jornalista não deixa de lembrar que "tem suas vantagens o Exército de um país de migração como o Brasil", já que há soldados que falam alemão, italiano, polonês... Alimentação, rotinas e instalações são também registradas.

Rubem Braga, conhecido por textos em que declara seu amor pela natureza e pelas mulheres, quase nos surpreende com o peso de seus textos. Quase, porque a bem da verdade a gente só sente o peso ao final, já que o olhar do capixaba retrata sempre com leveza os momentos mais duros. Quando vai registrar um massacre do exército alemão, ele se explica antes: "O que vou contar é um crime monstruoso. Mas eu me esforcei para contá-lo da maneira mais seca. Acho que não se deve 'dramatizar' este tipo de coisas. Não são 'atrocidades de propaganda'."

O que me faz acreditar que esses textos são tão necessários é a proximidade. Existem dezenas de livros sobre a Segunda Guerra (inclusive ficções dramatizadas), mas o brasileiro que os lê não tem dimensão do quanto isso nos foi próximo. Imagino que o cuidado que Braga teve ao registrar nomes e endereços de soldados foi muito significativo para as famílias que aqui os esperavam - era uma prova de que eles ainda estavam vivos. Acredito que ainda hoje isso seja importante, porque eventualmente alguém reconhecerá um endereço ou um nome e lembrará que alguém que morava aqui ao lado foi para a guerra. Se ainda na escola essa percepção existisse, quem sabe hoje teríamos menos reproduções nas ruas brasileiras dos preconceitos que originaram a guerra na Europa e fizeram tantos inocentes morrer.

Em diversos momentos Braga se vale do seu papel de cronista para expor sua opinião diante da vivência da guerra. É difícil escolher um trecho, mas segue este para encerrar esse pequeno-grande relato sobre a necessidade da leitura deste livro:

"O tedesco vai indo. Mas um dia, ele, positivamente, não terá mais para onde ir - a não ser, oh! meus irmãos, para o raio que o parta.
E o problema então - está chegando a hora de decidir esse problema - será fazer com que o nazismo não volte. Porque ele pode voltar com outro nome, na Alemanha ou fora da Alemanha. Ele pode brotar outra vez do chão - na Europa, na Ásia, ou em nossa América.
O fascismo é uma praga difícil de exterminar. É o preço que os povos pagam pela própria desídia. É a defesa frenética dos privilegiados. E contra ele só há um remédio verdadeiro: conquistar e manter a todo custo a liberdade do homem, e só há liberdade entre os homens quando cada um vale pelo seu trabalho - e não pelo seu nascimento nem pelos privilégios. Ninguém se iluda: acabar com as injustiças nacionais e sociais, que são o caldo da cultura do fascismo e das guerras, será uma luta muito dura, uma grande luta do povo." (p. 166 - in 'Plantações', de 8 de fevereiro de 1945).
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Lucas 29/06/2020

O bom jornalismo e o seu papel na função de informar e perpetuar e uma justa homenagem ao pracinha brasileiro
O capixaba Rubem Braga (1913-1990) é o autor de um dos livros mais surpreendentes que um leitor pode ter nas mãos: Crônicas da Guerra na Itália, que foi lançado originalmente em 1964 e relançado pela Editora Record em 2014, é uma daquelas obras que o leitor mais desavisado (ou que não conhecia o talento do jornalista que escreveu as crônicas do livro citado) não espera grande coisa; contudo, após uma dezena de páginas lidas percebe-se que tem-se nas mãos uma obra-prima.

Antes de um excelente cronista, Rubem Braga foi um jornalista, daqueles de jornal impresso mesmo (função essa que tem ficado num segundo plano atualmente. Hoje, associa-se muito mais o seu blog ao respectivo jornalista do que ao jornal que ele trabalha, mas isso será abordado mais a frente). Mais do que isso, Braga recebeu a missão de, como jornalista do Diário Carioca, (jornal que funcionou entre 1928 e 1965), atuar como correspondente de guerra na Itália entre novembro de 1944 e abril de 1945.

Acompanhando as tropas brasileiras que lutaram no norte da Itália naquele período, Braga era os olhos dos leitores do seu jornal naquele período difícil e histórico. Era o fim da guerra, com os nazistas cada vez mais enfraquecidos pelas duas principais frentes do conflito àquele momento: a oriental, com os soviéticos empurrando as tropas alemãs para cada vez mais perto de Berlim e a ocidental, com norte-americanos, britânicos e franceses, basicamente, que iniciavam esse mesmo processo de recuo partindo do litoral francês (a partir do famoso Dia D, em 06 de junho de 1944). Contudo, engana-se quem pensa que as tropas alemãs que ocupavam a Itália estavam em retirada: foram necessárias várias batalhas sangrentas para que efetivamente se iniciasse a desocupação dos nazistas (batalhas essas que os pracinhas brasileiros tomaram parte e foram de imensa valia).

O envio de tropas através da Força Expedicionária Brasileira (FEB, cujo símbolo era uma cobra fumando, algo explicado nas crônicas) à Itália foi um assunto que gerou controvérsias e ainda hoje é um pouco nebuloso. Certos acordos comerciais com os Estados Unidos dão a entender que os norte-americanos impuseram a participação do Brasil na guerra. Por pressão ou não, fato é que o combate ao fascismo acabou tornando insustentável a situação de Getúlio Vargas (1882-1954) no poder, já que o chamado Estado Novo (imposto pelo gaúcho em 1937) que estava em vigor, se baseava em muitas restrições de liberdade e autoritarismos defendidos pelos inimigos da FEB. Tal incongruência foi um dos motivos que levaram à deposição de Vargas no fim de 1945.

Todo esse aspecto político não é desenvolvido nas crônicas de Rubem Braga (até porque o que ele escrevia e enviava ao Diário Carioca passava por filtros da censura). Mas precisa ser contextualizado para que se entenda toda a atmosfera política que fez com que pouco mais de 25.000 brasileiros e brasileiras (muitas enfermeiras, especialmente, foram enviadas para lá) chegassem em território desconhecido para lutar pela liberdade do mundo (o que acabou custando cerca de 450 vidas brasileiras).

Rubem Braga demonstra esse papel de forma bem pontual. São relatos que precisam estar inseridos no contexto da atualidade da época, pois foi a história posterior que julgou essa atmosfera política. Assim, as crônicas possuem um tom muito mais relacionado a questões práticas inerentes ao conflito, como a saudade dos praças de casa, a agonia pela espera de cartas vindas do Brasil, a alimentação dos soldados, a preparação das batalhas (como a de Montese e Monte Castelo, comandadas pelos brasileiros e fundamentais à expulsão dos nazistas do solo italiano), etc.

Recomenda-se a leitura destas crônicas por muitos motivos, mas talvez o que mais se destaca é o de que elas conseguem dimensionar a participação dos soldados brasileiros no conflito e a relação que eles acabaram desenvolvendo com o sofrido povo italiano. Historicamente, há um "vira-latismo" brasileiro que envolve o nosso poderio militar, mas ter uma noção mais exata da participação do Brasil no maior conflito da humanidade até hoje ajuda a desmistificar muitos elementos depreciativos. Seja por pressão dos EUA ou não, nossos soldados, se não fizeram o papel de herói de filme norte-americano, precisam ser reconhecidos por muitas atitudes positivas, representadas por Rubem Braga através de vários relatos e narrações mais individualizadas.

Mas, essencialmente, as crônicas são todas singulares pela forma que são construídas. É cativante a técnica do autor em narrar um determinado local, acontecimento ou uma reflexão do dia-a-dia das tropas e usar essa narração com uma metáfora que conduz a uma conclusão mais abrangente, muito válida no contexto de ódio que se vive atualmente. Há uma poesia imiscuída nessas descrições que encanta. Por exemplo, quando ele cita a crueldade das minas terrestres e relaciona elas com o solo, a importância do solo para os alimentos, etc.; ou quando Rubem Braga descreve uma imagem do Cristo Crucificado destroçada que ele encontra numa igrejinha e a relação que ele faz com o soldado partindo disso... Tudo isso e muito mais é lindo, genial e muito acolhedor.

Se esse papel do jornalista for comparado com o jornalismo atual, as conclusões não são tão positivas. O mais sutil papel de um jornalista correspondente é narrar aquilo que ele presencia; é ser, como mencionado anteriormente, os olhos de um determinado público em uma determinada situação. Essa função de relato obviamente fazia muito mais sentido há 75 anos onde não havia as facilidades de comunicação de hoje. Mas esta característica é a mais importante do bom jornalismo e ela tem se perdido um pouco neste início de século XXI, quando há uma preocupação maior em informações oriundas de fontes desconhecidas, alguns achismos que muitas vezes não refletem a realidade, entre outros pontos que ocasionam um jornalismo de "fofoca" que não só desinforma como arranha um pouco a imagem dessa profissão tão importante. Toda essa busca por fontes e o sigilo delas são princípios constitucionais que não podem ser condenados, mas o que se questiona aqui é esse caráter mais próprio do jornalismo, da função de relatar, com responsabilidade, isenção e sem vieses comerciais aquilo que o jornalista enxerga.

Crônicas da Guerra na Itália é um produto do bom jornalismo. Em meio a inimagináveis dificuldades logísticas, Rubem Braga escreveu crônicas que precisam ser valorizadas porque descrevem, de uma forma pontualmente poética um período difícil da humanidade e o papel de bravos brasileiros nisso. É, também, uma homenagem ao pracinha brasileiro, que muito bem representou o país na luta pelo fim do nazismo e, cujo papel, infelizmente não é tão valorizado quanto deveria.
Peregrina 29/06/2020minha estante
Fantástica reflexão ao final da resenha, Lucas. Foi muito enriquecedora a leitura para mim também há uns anos. Meus conhecimentos sobre a atuação dos pracinhas na Segunda Guerra estavam restritos a uma fala medíocre e desdenhosa, veja só, de um professor de história (!!!) do Ensino Médio. Muito bom ter um vislumbre de um jornalista genuíno e ainda por cima brasileiro acerca de um dos conflitos mais marcantes do século passado. Do Rubem Braga recomendo muito o livro de crônicas "Ai de ti, Copacabana" caso ainda não tenhas lido. Um abraço!


Lucas 30/06/2020minha estante
Fui surpreendido pelo seu conterrâneo, essa que é a verdade kkk. Esse tipo de "professor" de história é mais comum do que se imagina mesmo... Sempre soube que esse desdém não era justo, mas confesso que a leitura dessas crônicas trouxeram-me uma noção bem mais aprofundada do papel do nosso país no conflito. Nossos soldados, diferente do que pode se imaginar, cumpriram muito bem seu papel pela liberdade do mundo, que, de fato, era o que a 2ª Guerra Mundial representava. E anotei a sua recomendação, ainda lerei muita coisa do autor. :) Abraço.




guibre 12/01/2014

Os textos de Rubem Braga que foram publicados no Diário Carioca, para o qual atuou como correspondente de guerra na frente italiana, ocupam a maior parte da obra, mas não são a melhor parte dela. Sem dúvida, Rubem Braga soube abordar inúmeros temas, indo muito além dos campos de batalha. Mencione-se, por exemplo, o contato que teve com uma jovem italiana e as análises políticas dele decorrentes. Talvez esses textos tenham sofrido perda de qualidade devido a censura - mencionada pelo autor no prefácio - comprometendo até mesmo a compreensão de alguns deles.
O melhor da obra, na minha perspectiva, são dois textos, situados após os que já foram mencionados. O primeiro, que originalmente destinava-se para publicação no Diário Carioca, aborda o final da guerra. Nele, se encontra a intrepidez do autor e de outros correspondentes de guerra diante da debandada dos alemães. Em busca de informações, adentraram as linhas inimigas mais de uma vez, ferindo-se. O segundo não é propriamente uma narrativa, mas uma entrevista concedida pelo autor em 1975. Em duas páginas, faz uma análise fria, crítica e direta sobre a FEB.
Considerada a diversidade de assuntos abordados nos textos incluídos na obra (um deles aborda a alimentação dos soldados) e a qualidade da prosa do autor, conclui-se que o livro é uma boa leitura para aqueles que querem compreender o que é uma guerra e sobre a participação brasileira na Segunda Guerra Mundial.
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