Lucas 29/06/2020
O bom jornalismo e o seu papel na função de informar e perpetuar e uma justa homenagem ao pracinha brasileiro
O capixaba Rubem Braga (1913-1990) é o autor de um dos livros mais surpreendentes que um leitor pode ter nas mãos: Crônicas da Guerra na Itália, que foi lançado originalmente em 1964 e relançado pela Editora Record em 2014, é uma daquelas obras que o leitor mais desavisado (ou que não conhecia o talento do jornalista que escreveu as crônicas do livro citado) não espera grande coisa; contudo, após uma dezena de páginas lidas percebe-se que tem-se nas mãos uma obra-prima.
Antes de um excelente cronista, Rubem Braga foi um jornalista, daqueles de jornal impresso mesmo (função essa que tem ficado num segundo plano atualmente. Hoje, associa-se muito mais o seu blog ao respectivo jornalista do que ao jornal que ele trabalha, mas isso será abordado mais a frente). Mais do que isso, Braga recebeu a missão de, como jornalista do Diário Carioca, (jornal que funcionou entre 1928 e 1965), atuar como correspondente de guerra na Itália entre novembro de 1944 e abril de 1945.
Acompanhando as tropas brasileiras que lutaram no norte da Itália naquele período, Braga era os olhos dos leitores do seu jornal naquele período difícil e histórico. Era o fim da guerra, com os nazistas cada vez mais enfraquecidos pelas duas principais frentes do conflito àquele momento: a oriental, com os soviéticos empurrando as tropas alemãs para cada vez mais perto de Berlim e a ocidental, com norte-americanos, britânicos e franceses, basicamente, que iniciavam esse mesmo processo de recuo partindo do litoral francês (a partir do famoso Dia D, em 06 de junho de 1944). Contudo, engana-se quem pensa que as tropas alemãs que ocupavam a Itália estavam em retirada: foram necessárias várias batalhas sangrentas para que efetivamente se iniciasse a desocupação dos nazistas (batalhas essas que os pracinhas brasileiros tomaram parte e foram de imensa valia).
O envio de tropas através da Força Expedicionária Brasileira (FEB, cujo símbolo era uma cobra fumando, algo explicado nas crônicas) à Itália foi um assunto que gerou controvérsias e ainda hoje é um pouco nebuloso. Certos acordos comerciais com os Estados Unidos dão a entender que os norte-americanos impuseram a participação do Brasil na guerra. Por pressão ou não, fato é que o combate ao fascismo acabou tornando insustentável a situação de Getúlio Vargas (1882-1954) no poder, já que o chamado Estado Novo (imposto pelo gaúcho em 1937) que estava em vigor, se baseava em muitas restrições de liberdade e autoritarismos defendidos pelos inimigos da FEB. Tal incongruência foi um dos motivos que levaram à deposição de Vargas no fim de 1945.
Todo esse aspecto político não é desenvolvido nas crônicas de Rubem Braga (até porque o que ele escrevia e enviava ao Diário Carioca passava por filtros da censura). Mas precisa ser contextualizado para que se entenda toda a atmosfera política que fez com que pouco mais de 25.000 brasileiros e brasileiras (muitas enfermeiras, especialmente, foram enviadas para lá) chegassem em território desconhecido para lutar pela liberdade do mundo (o que acabou custando cerca de 450 vidas brasileiras).
Rubem Braga demonstra esse papel de forma bem pontual. São relatos que precisam estar inseridos no contexto da atualidade da época, pois foi a história posterior que julgou essa atmosfera política. Assim, as crônicas possuem um tom muito mais relacionado a questões práticas inerentes ao conflito, como a saudade dos praças de casa, a agonia pela espera de cartas vindas do Brasil, a alimentação dos soldados, a preparação das batalhas (como a de Montese e Monte Castelo, comandadas pelos brasileiros e fundamentais à expulsão dos nazistas do solo italiano), etc.
Recomenda-se a leitura destas crônicas por muitos motivos, mas talvez o que mais se destaca é o de que elas conseguem dimensionar a participação dos soldados brasileiros no conflito e a relação que eles acabaram desenvolvendo com o sofrido povo italiano. Historicamente, há um "vira-latismo" brasileiro que envolve o nosso poderio militar, mas ter uma noção mais exata da participação do Brasil no maior conflito da humanidade até hoje ajuda a desmistificar muitos elementos depreciativos. Seja por pressão dos EUA ou não, nossos soldados, se não fizeram o papel de herói de filme norte-americano, precisam ser reconhecidos por muitas atitudes positivas, representadas por Rubem Braga através de vários relatos e narrações mais individualizadas.
Mas, essencialmente, as crônicas são todas singulares pela forma que são construídas. É cativante a técnica do autor em narrar um determinado local, acontecimento ou uma reflexão do dia-a-dia das tropas e usar essa narração com uma metáfora que conduz a uma conclusão mais abrangente, muito válida no contexto de ódio que se vive atualmente. Há uma poesia imiscuída nessas descrições que encanta. Por exemplo, quando ele cita a crueldade das minas terrestres e relaciona elas com o solo, a importância do solo para os alimentos, etc.; ou quando Rubem Braga descreve uma imagem do Cristo Crucificado destroçada que ele encontra numa igrejinha e a relação que ele faz com o soldado partindo disso... Tudo isso e muito mais é lindo, genial e muito acolhedor.
Se esse papel do jornalista for comparado com o jornalismo atual, as conclusões não são tão positivas. O mais sutil papel de um jornalista correspondente é narrar aquilo que ele presencia; é ser, como mencionado anteriormente, os olhos de um determinado público em uma determinada situação. Essa função de relato obviamente fazia muito mais sentido há 75 anos onde não havia as facilidades de comunicação de hoje. Mas esta característica é a mais importante do bom jornalismo e ela tem se perdido um pouco neste início de século XXI, quando há uma preocupação maior em informações oriundas de fontes desconhecidas, alguns achismos que muitas vezes não refletem a realidade, entre outros pontos que ocasionam um jornalismo de "fofoca" que não só desinforma como arranha um pouco a imagem dessa profissão tão importante. Toda essa busca por fontes e o sigilo delas são princípios constitucionais que não podem ser condenados, mas o que se questiona aqui é esse caráter mais próprio do jornalismo, da função de relatar, com responsabilidade, isenção e sem vieses comerciais aquilo que o jornalista enxerga.
Crônicas da Guerra na Itália é um produto do bom jornalismo. Em meio a inimagináveis dificuldades logísticas, Rubem Braga escreveu crônicas que precisam ser valorizadas porque descrevem, de uma forma pontualmente poética um período difícil da humanidade e o papel de bravos brasileiros nisso. É, também, uma homenagem ao pracinha brasileiro, que muito bem representou o país na luta pelo fim do nazismo e, cujo papel, infelizmente não é tão valorizado quanto deveria.