Descansar do Mundo

Descansar do Mundo Marina Cardoso




Resenhas - Descansar do Mundo


1 encontrados | exibindo 1 a 1


Krishnamurti 15/09/2018

Entre tintas e cimentos de um caleidoscópio urbano, o amor.
43 crônicas estão reunidas no segundo livro da jornalista paulistana Marina Bueno Cardoso a ser lançado pela Editora Penalux. Com o instigante título de “Descansar do Mundo”, a autora nos oferece um conjunto variado de temas e abordagens, todos ambientados numa São Paulo revisitada ao longo tempo, num arco que percorre os anos 60 até a trepidante metrópole desse 2018. Em uma das crônicas lemos a confissão: “Tenho SP no DNA, amo minha cidade e procuro explorá-la ao máximo com amigos de todas as tribos e programas dos mais distintos”.
E o leitor é convidado e deixa-se levar facilmente em textos dos mais variados matizes. Empolga-nos com um amor descoberto na Internet que acaba dando numa terrível “zebra”, como está em “teclando com data vênia”, noutro percebemos que conforme a sensibilidade de cada um pode-se ouvir música de qualidade em meio ao barulho ensurdecedor da metrópole, inquieta-se com as fobias que um trânsito enlouquecido submete, conhece as vidas de tantos e tantos migrantes e imigrantes que a cidade sempre acolheu, alguns com positivo sucesso na vida, outros apenas conseguindo sobreviver, e outros tantos fadados a mendigar pelas ruas ou a recorrer a expedientes nos sinais de trânsito. Há espaço e muito, para os registros de uma cidade que vai se transformando tanto física, como moralmente, mudança de costumes e emancipações e/ou submissões ao negativo. Uma urbe sinistra do bem e do mal.
João Anzanello Carrascoza, que assina a orelha da obra, identifica em Marina o constante “apelo à memória, que recupera preciosidades do passado e as atualiza com o conhecimento de hoje. Com efeito, deparamo-nos com uma miríade de reflexões e lembranças que afloram do universo da autora através das interferências da memória expostas nas crônicas. A autora põe a público detalhes particulares de sua vida, analisa-os criticamente e especifica sua opinião diante das coisas do mundo, sugerindo com a sua experiência de vida, que nosso tempo é de travessias: e, se não ousarmos fazê-las, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos. Alguém já escreveu que “o tempo insiste em nos lembrar, pondo em nossos caminhos escolhas, questionamentos e decisões. A estrada quem constrói somos nós”.
Finalmente, e a modo de uma ligeira “crônica”, salientamos que no segundo texto da obra, que é “Entre tintas e cimentos, o amor”, encontramos a história de uma garotinha que foi levada pelo pai a uma verdadeira festa infantil montada em um canteiro de obras. A memória da garotinha, hoje nos conta: “Foi uma tarde inesquecível no canteiro de obras daquele predião. Sim, eu sabia que ia ser um predião. Havia andaimes altíssimos, tratores, caminhões com muuuitos tijolos e cimento. Mas quando conto para os outros sobre tal tarde de domingo surge uma lágrima nostálgica, de saudades daqueles finais de semana na cidade que crescia. Saudades da menina que, de mãos dadas com o pai, descobria o mundo e seu colorido”.
Sim, um predião foi se erguendo na cidade de São Paulo que ia se construindo. Aí uma bela metáfora da vida da própria autora que também foi se construindo, subiu em andaimes altos da juventude, caiu de alguns deles, divisou verdades do alto de outros, fugiu quando criança, em Kombis e diabruras de garotos a descobrir a vida, namorou, amou, estudou, observou e odiou a “força da grana que ergue e destrói coisas belas”, na sua tão amada cidade. Argamassou muitos tijolos de experiência a construir as paredes da vida, em suma, simplesmente viveu, e como se não bastasse, ainda resolveu-se a dar aulas e ensinar aos deserdados da sorte, propiciar o saber que a tantos e tantos é negado. E todo esse ciclo se fecha, na outra ponta da vida, na belíssima crônica que é “caleidoscópio urbano”, onde, em meio a turbulência da “cidade que não dorme” lemos o pungente relato da morte de sua mãe, tantos e tantos anos depois:
“... São quase 23h, parece que o mundo parou, tudo vazio. Dirijo em câmara lenta. Finalmente falo com meu irmão. Minha mãe partiu”, e tal como no poema de Celso de Alencar: “Há uma mulher falecida / na primeira metade / da noite fria. // Nos céus estão voando / milhões de vagalumes / se acendendo como se fossem / luzes expostas da aurora boreal”.
O amor, em seus tantos e tão variados tons, este o sentido último. Não importa; o valor das coisas não está em quando aconteceram, ou no tempo que elas duram, mas na intensidade com que aconteceram e nas marcas que em nós imprime. As crônicas de Marina Bueno nos fazem recordar daquela linda canção de Nana Caymmi que começa com: “Batidas na porta da frente / É o tempo”... Tempo nos remete a lembranças, vamos lembrando também de Quintana e seu verso a nos sussurrar: “O passado não reconhece o seu lugar: está sempre presente”. E ainda, ao cabo da leitura, ouvimos como um sopro no ouvido o verso de Drummond a alertar de que “perder tempo em aprender coisas que não interessam, priva-nos de descobrir coisas interessantes”. E no outro ouvido, quase ao mesmo tempo, o sussurro arrepiante na voz de Fernando Pessoa: “O próprio viver é morrer, porque não temos um dia a mais na nossa vida que não tenhamos, nisso, um dia a menos nela”. E juntamos tudo isso e olhamos a nossa condição humana, simplesmente assim. Mas disso tiramos ainda outra reflexão: quanto tempo dura uma memória em nossa época de velocidade terrível, cruel e desanimadora? Ao transpor para o papel e para a tessitura literária recortes de vida e de sua história particular, a senhora Marina Bueno Cardoso permite ao leitor, sobretudo aos mais sensíveis, abstrair o quanto os rastros e marcas da memória influenciam na construção psicológica e identitária do ser humano, a ponto de interferir na ordem do seu cotidiano. O tempo nos faz aprender. Eis outra dimensão do poder da Literatura. Reviver, propagar multiplicando em aprendizados o percurso de nossas vidas.

Livro: “Descansar do mundo”- Crônicas de Marina Bueno Cardoso – Editora Penalux, Guaratinguetá - SP, 2018, 150 p.
ISBN 978-85-5833-350-4
OBS: LINK PARA COMPRA:
http://editorapenalux.com.br/loja/index.php?route=product/search&search=Descansar%20do%20mundo
comentários(0)comente



1 encontrados | exibindo 1 a 1


Utilizamos cookies e tecnologia para aprimorar sua experiência de navegação de acordo com a Política de Privacidade. ACEITAR