Amanda 28/04/2019Metalinguagem, lições de humanidade e escrita criativaFalar de Shakespeare nunca é fácil. Exceto, talvez, para Margaret Atwood. Semente de Bruxa reconta a história de A Tempestade, última peça do dramaturgo inglês. Primeiramente, partindo do original, é preciso dizer que A Tempestade, assim como a maior parte das obras shakespearianas, é complexa, cheia de camadas e interpretações, com metáforas e simbolismos sobre a condição humana e as problemáticas sociais. Apesar de não tão conhecida se comparada às grandiosas Hamlet, Otelo e Romeu e Julieta, A Tempestade é absolutamente genial, densa e atemporal, trabalhando um dos temas favoritos do grande mestre: a vingança.
No texto original, Próspero, o duque de Milão, se vê traído pelo irmão usurpador e é obrigado a fugir com a filha, Miranda, então uma criancinha, em um barco precário. Eles encontram uma ilha e fazem dela seu refúgio (mas também sua prisão). Na ilha, encontram espíritos e Calibã, filho da bruxa Sycorax. Calibã é um personagem fundamental da trama, tratado como escravo, meio monstro inescrupuloso, meio animal ingênuo, de forma que não é nenhuma surpresa que seja ele o título de Semente de Bruxa.
Antes de começar a leitura de Semente de Bruxa, recomendo fortemente a leitura prévia da peça original, que pode ser encontrada no final da edição da Morro Branco (que está linda, por sinal!).
"O inferno está vazio e todos os demônios estão aqui." - A Tempestade, William Shakespeare.
Margaret Atwood narra a história de Félix, um decrépito diretor de teatro, com nada além de um passado memorável, ainda que polêmico, e sentimentos sórdidos e desesperados sufocados pela depressão que o impede de agir. Traído e exilado, assim como o Próspero de Shakespeare, Félix inscreve-se como professor de teatro no presídio masculino local, onde tenta, finalmente, recriar sua Tempestade.
Semente de Bruxa conta uma história dentro de outra, e por mais confuso que isso possa parecer, a leitura é incrivelmente próxima do leitor. Narrado no formato de diário em terceira pessoa, o livro inicia já em seu clímax e então regride, contando o que levou Felix àquela situação.
Não apenas os personagens são terrivelmente reais, complexos, vivos, mas também relacionam-se diretamente com seus correspondentes shakespearianos. A Tempestade serve como instrumento catártico para Félix e sua trupe. Uma vez dentro dos personagens, o teatro serve como terapia para cada um expurgar seus próprios demônios, livrar-se de traumas e seguir em frente. Essa é uma das características mais poderosas da arte, conceito-base de qualquer produção, e é ricamente trabalhada por Atwood, que não apenas nos conta uma história, mas nos ensina o verdadeiro propósito da narrativa, da leitura, da vivência artística.
Ainda sobre os personagens, Félix é tão controverso quanto o próprio Próspero - ame-o ou odeie-o. Fanático, meio louco e vingativo, mas também paternal e zeloso, ele impulsiona a trama e faz de toda a história seu próprio palco. Miranda, a filha-musa, semi-deusa de Félix, é ainda mais complexa de se comentar, especialmente sem entregar aspectos relevantes da história. Basta dizer que é a personagem tem tantas camadas e facetas quanto se é possível ousar sem se perder completamente a essência, e isso só é possível pelas mãos habilidosas da autora. Cada prisioneiro membro da trupe assume um papel fundamental na peça e também na história, cheios de personalidade e carisma, mas entre eles é Calibã e seus sementes de bruxa que roubam a cena.
Calibã, aliás, é um personagem digno de nota em qualquer circunstância. Ele, que é a alma da história, ainda que relegado à condição de escravo de Próspero. Aliás, talvez justamente por sua natureza prisioneira. Calibã representa toda a narrativa: é a escória, o injustiçado, o demônio, a criatura ignorante, o devasso, o dono de tudo e de nada, o prisioneiro, a própria escravidão.
E a traição? Personificada pelos inimigos de Próspero e de Félix, a traição é o elemento que define o teor da trama. Em contrapartida, a vingança marca o objetivo, o clímax e o aspecto psicológico tanto de A Tempestade quanto de Semente de Bruxa. Ambas as histórias, unidas em uma só, possuem as mesmas cores. Mas Atwood tem suas próprias regras, e vai além: não basta recontar, é preciso refletir.
"Havia um desespero febril nesses seus esforços remotos, mas o melhor tipo de arte não era a que carregava o desespero em seu âmago? Não era sempre um desafio à Morte? Um dedo do meio provocador à beira do abismo?"
Semente de Bruxa é um livro profundamente semiótico. Tudo tem um porquê de ser, cada simbolismo, cada palavra, cada personagem e cenário estão intrinsecamente relacionados à Tempestade e, por fim, à parcela humana da história. Nesse sentido, a Morro Branco criou a arte de capa mais relevante e sensível de qualquer edição que o livro já recebeu, incorporando completamente a proposta definida pela autora, proporcionando a tão merecida reflexão desde o primeiro momento da leitura.
É importante frisar a complexidade e domínio da escrita da autora. Além da metalinguagem e do exercício de conceitos fundamentais da arte e do teatro, como a mímeses, a catarse e os aspectos técnicos, Margaret Atwood também nos dá uma belíssima aula de interpretação, roteiro e escrita criativa. Leia Semente de Bruxa como entretenimento, não há nada de errado nisso. Mas observe as nuances e lições e a leitura será integral, uma verdadeira aprendizagem sobre narrativa e literatura, sobre arte e psicologia e, sobretudo, sobre criatividade. Semente de Bruxa é o pacote completo.