spoiler visualizarAlissia0 31/03/2024
Sobrevivendo no Inferno, por Racionais Mc's
Eu sou uma pessoa curiosa e gosto de (frequentemente) encontrar um significado oculto (ou explícito) nas coisas, em especial filmes e músicas. Além de ser curiosa, também sou uma amante das ciências sociais, um elemento que está muito presente nas obras dos Racionais MC's. Veja, não estou dizendo que as obras do grupo foram escritas e produzidas a partir dessa ciência, mas sim que elas podem ser analisadas por meio desta, na medida em que as obras são uma denúncia à situação nacional atual para com a população periférica e carcerária ? mas, acima disso, o papel do Estado brasileiro para com a segurança e sobrevivência dessas massas.
Ao ler sobre o disco a partir dessa lente e escutar as músicas, fica ainda mais sintetizado como o grupo expõe a normativa de extermínio do Estado brasileiro para com um grupo étnico e social específico, em especial após o Massacre do Carandiru. É uma denúncia ao projeto nacional de genocídio e de organização social, que também envolve uma série de outras tragédias violentas com o objetivo de gerenciar a miséria e a pobreza.
O grupo também revela a hipocrisia desse Estado, uma vez que aqueles que o compõem, como a polícia, também são criminosos na mesma medida que um ladrão de rua, especialmente quando notamos o índice de policiais corruptos envolvidos com tráfico, milícias, lavagem de dinheiro (entre outros) ? perfeitamente explícito nos filmes nacionais ?Tropa de Elite?.
?Se diz que moleque de rua rouba
O governo, a polícia no Brasil, quem não rouba?
Ele só não têm diploma pra roubar
Ele não se esconde atrás de uma farda suja
É tudo uma questão de reflexão, irmão
É uma questão de pensar? (Mágico de Oz)
O O grupo Racionais MC?s também criou as condições para que o morador da periferia se aceitasse como tal e se orgulhasse de suas origens e de fazer parte de uma cultura, como uma ideia que reafirma ainda mais uma vez a posição contra-histórica do grupo e o elemento que torna a obra Sobrevivendo no Inferno tão impactante e disruptiva para a literatura, o teatro, o cinema, a televisão e todo o campo da música popular brasileira.
Ao escutar ?Tô Ouvindo Alguém Me Chamar?, é possível notar em um trecho a veracidade do fato que indica que existe talento nas favelas, mas infelizmente desperdiçado atrás das grades. Nesse ponto, podemos pensar nisso como mais uma chamada de atenção da obra para sua principal mensagem, mas também podemos olhá-lo através de uma segunda lente ? que nos faz refletir sobre outra perspectiva: não há investimentos suficientes nas favelas pelo Estado, tampouco pelas empresas, e quanto lucro ambas as partes estão perdendo com isso?
?Guina, eu tinha mó admiração, ó
Considerava mais do que meu próprio irmão, ó
Ele tinha um certo dom pra comandar
Tipo, linha de frente em qualquer lugar
Tipo, condição de ocupar um cargo bom e tal
Talvez em uma multinacional
É foda...
Pensando bem que desperdício
Aqui na área acontece muito disso
Inteligência e personalidade
Mofando atrás da 🤬 #$%!& de uma grade? (Tô Ouvindo Alguém Me Chamar)
Diversas iniciativas e estudos demonstram que as favelas são um verdadeiro centro de talentos e habilidades intelectuais incontáveis, ao contrário da narrativa histórica que estigmatiza as periferias como espaços de carência e marginalização. Nessas comunidades, encontramos a origem de soluções e artifícios que influenciam nosso dia a dia, como uma sociedade consumista, desde a música e a arte até a culinária e a moda. No entanto, desafios como o acesso a um ensino e educação precários e de baixa qualidade, o baixo índice de recrutamento nas favelas pelas empresas e a discriminação social limitam as oportunidades para jovens talentos nascidos e crescidos nas comunidades.
Isso me leva novamente ao ponto de partida principal dessa obra ? e posteriormente seu propósito: uma guerra a céu aberto, de caráter sistemático, que tem como intuito o controle da estrutura social brasileira a partir da violência contra os mais pobres. Sob a lente da guerra às drogas, que surgiu na década de 1970, também podemos ver a manifestação dessa narrativa como mecanismo para a gestão da violência, perpetuando desigualdades e criminalizando a pobreza, e reforçando a estigmatização das comunidades. Além disso, também fomenta, em última instância, um ciclo interminável do aumento do mercado ilegal dentro das comunidades, alimentando a violência nas periferias, entre os seus moradores, e contribuindo para o sucesso do projeto nacional de organização social, ao mesmo tempo em que exclui esses cidadãos do projeto de integração socioeconômica.
Os Racionais MC's denunciam essa violência como algo cotidiano na favela, e que é constante - não só pela polícia, mas também entre os próprios moradores, como evidenciado nas consequências da guerra às drogas citada anteriormente. Em "Rapaz Comum", isso fica claro: "Depois ficava sabendo na semana
Que dois já era, os preto sempre teve fama
No jornal, revista e TV se vê
Morte aqui é natural, é comum de se ver
🤬 #$%!& ! Não quero ter que achar normal
Ver um mano meu coberto com jornal
É mal, cotidiano suicida
Quem entra tem passagem só pra ida!". E, para além da morte, há o trágico destino do encarceramento ? que, por sua vez, é um sistema carcerário usado como aparato para a manifestação da depravação estatal brasileira para com a população periférica. "Diário de um detento" vem para revelar a autoria do Estado para com o maior e mais sangrento massacre carcerário da história do sistema prisional brasileiro e, além disso, como a violência estatal presente nos presídios torna um sujeito livre em apenas mais um número dentre a massa populacional carcerária e social num todo ? operando como um projetor de violência psicológica além da física.
A partir dessa realidade, o disco Sobrevivendo no Inferno assume como principal mensagem que a vida no crime não é o caminho para garantir a sobrevivência da comunidade, uma vez que "tanto os Racionais quanto o rap brasileiro em geral vão reconhecer no destino do bandido e do marginal (...) o segredo para a emancipação da periferia como um todo". O objetivo do disco é tornar as palavras contidas nas músicas um ensinamento e construir uma ética comunitária capaz de não permitir o "desandar", ou melhor, garantir que o sujeito periférico ande "pelo certo". O disco também, ao mesmo tempo, compreende as contradições e complexidades inerentes à vida marginal dentro das comunidades.("Mano, que treta, mano! Mó treta, você viu?
Roubaram o dinheiro daquele tio!"
Que se esforça sol a sol, sem descansar!
Nossa Senhora o ilumine, nada vai faltar.
É uma pena. Um mês inteiro de trabalho.
Jogado tudo dentro de um cachimbo, 🤬 #$%!& !
O ódio toma conta de um trabalhador,
Escravo urbano." (...) "A revolta deixa o homem de paz imprevisível.
Com sangue no olho, impiedoso e muito mais."). No entanto, o disco ainda tem, literalmente, um intuito de salvação por meio dos relatos descritos nas músicas, que também têm a finalidade de compartilhar uma sabedoria e criar espaço para a sobrevivência da comunidade e resistir ao plano de extermínio do Estado brasileiro. ("Permaneço vivo, prossigo a mística/Vinte e sete ano contrariando a estatística").