Queria Estar Lendo 24/09/2018
Resenha: Filhos de Sangue e Osso
Children of Blood and Bone (Filhos de Sangue e Osso) é a estreia de Tomi Adeyemi no mercado literário; aqui, o livro está sendo publicado pelo selo Fantástica, da Editora Rocco. Com um universo fantástico centrado em recriações de diversas mitologias africanas, é uma leitura poderosa e cheia de adrenalina.
Na história, acompanhamos Zélie, órfã que teve sua mãe assassinada pelos soldados do rei quando um massacre foi ordenado a todos os maji do reino de Orïsha - pessoas que nasceram ligadas aos deuses e, portanto, carregam seus poderes mágicos. Com o massacre, a ligação com os deuses se perdeu e as crianças que deveriam carregar essa magia se tornaram ecos do passado.
"Corações bons não deixam cicatrizes como essas. Eles não queimam vilarejos até as ruínas."
Eis que o destino parece disposto a trazer de volta a grandiosidade de antes; quando o caminho de Zélie cruza com o de uma fugitiva e de um misterioso pergaminho, uma última chance de ligar Orïsha aos deuses renasce. Cabe a Zélie e alguns companheiros de viagem enfrentar os perigos de erguer sua voz contra a tirania de um assassino, para ter a chance de dar vida à magia que existiu antes.
Esse livro é muito complexo para explicar, então considere esse meu resumo uma coisa bem triste - porque é a verdade. Filhos de Sangue e Osso é muito mais do que isso.
É uma história rica, com seus clichês de fantasia, mas bem-vinda por trazer uma nova abordagem em tramas do tipo, um novo mundo e a exploração de uma mitologia tão rica quanto as várias repetitivas que livros do tipo já trouxeram.
Orïsha é uma terra carregada por medo e opressão; pela crueldade do que o rei fez com seu passado e a condenação que trouxe ao futuro. Zélie vive em um universo de medo, mas carrega consigo coragem e esperança e resiliência. Ela é rebelde por natureza, ansiosa por mudanças, por ter sua chance de lutar e provar seu valor. Quando essa chance é estendida a ela, no entanto, a jornada vai mostrar que os sacrifícios e as exigências para mostrar sua bravura talvez sejam muito maiores do que Zélie estava disposta a arriscar.
"Eu não vou permitir que meu medo silencie a verdade."
Eu gostei muito da protagonista. Não favoritei, no entanto, porque ela teve seus momentos de picuinha sem razão. Apesar de o livro dividir os pontos de vista entre mais dois personagens, Zélie é a voz da história. É através dela que contemplamos as possibilidades, os temores, a realidade do que é viver com medo de ser quem é, e de perceber que esse medo foi imposto e embrenhado em seus pensamentos a ponto de torná-la uma sombra de todo poder que carrega. E que poder!
Zélie é uma Ceifadora; ela é ligada à deusa da morte, tal como sua mãe. E quando a garota libera suas forças, rapaz. É de dar medo e de ficar impressionada. O modo como a autora desenvolve as cenas envolvendo os encantamentos e as ligações com os deuses foi fascinante. Ela sabe escrever adrenalina e ação tão bem que é de tirar o fôlego.
A respeito das picuinhas, achei algumas atitudes dela bem ingênuas e imaturas para o modo como a personagem já tinha sido apresentada. Mas não foram detalhes para atrapalhar a história. Toda protagonista tem que passar pelo seu momento irritante, faz parte da jornada.
"Na terra, a Mãe Céu criou humanos, seus filhos de sangue e ossos."
Outra personagem essencial para a história é Amari; uma surpresa e a minha favorita dentro da trama. A princesa cresceu sob privilégios e sob terror do próprio pai, sem fazer ideia do verdadeiro terror que ele lançava atrás dos muros do palácio. Quando essa crueldade vai além dos limites, Amari toma a decisão de se rebelar. E daí para frente seu arco de crescimento é de fazer você pular no sofá de tanta alegria.
A garota contida e amedrontada contempla um mundo novo além do palácio. Ela nunca teve a oportunidade de ver Orishä como realmente é, com suas falhas e fraquezas, com a força que seus moradores e moradoras carregam. Quando abre os olhos para seu reino, é acolhida por ele; é dada a ela a chance de se provar digna de protegê-lo. Amari vai de uma princesa vendada para a realidade até uma guerreira com um coração de ouro.
Seu irmão mais velho, Inan, foi um personagem complicado. Apesar de eu entender suas motivações, achei muito confuso a maneira com que ele mudava de ideia a cada capítulo que passava.
"Eles construíram esse mundo para você, construíram para amá-lo. Eles nunca o amaldiçoaram nas ruas, nunca quebraram as portas da sua casa. Eles não arrastaram sua mãe pelo pescoço e a enforcaram para o mundo assistir."
Mesmo um personagem em dúvida sobre suas condutas não passa por tantas escolhas divergentes em tão pouco tempo; me irritou, vou ser sincera. Achei preguiçoso da parte da narrativa entregar colocações tão pífias sobre os conflitos internos dele; era "vou lutar contra o meu pai" num capítulo para "talvez os rebeldes estejam errados" no outro e logo depois "ok meu pai está certo mesmo" e volta pra "eu vou enfrentar o sistema". Ô SEU CHATO, PARA DE ME ENCHER O SACO!
Eu odeio o Inan. É isto.
Tzain, irmão de Zélie, foi bem aleatório para mim. Achei algumas atitudes dele bem hipócritas, mas o personagem não foi pintado como um herói - diferente do Inan, os conflitos dele funcionaram bem exatamente por não ser um coadjuvante gostável. Não havia justificativa para suas reações ariscas além das próprias emoções. Ele se pintou muito menos de coitado do que o Inan; dá vontade, né, babaca?
Eu tô com muita raiva, me deixa!
"Frente à magia, nós nos tornamos formigas."
Um coadjuvante que surgiu aos 45 do segundo tempo e roubou completamente meu coração foi Roën, meu Carswell Thorne 2.0. Ele é literalmente aquele arquétipo de malandro charmoso que tem um espírito grandioso, que esconde seus sentimentos atrás do sarcasmo, e eu vou morrer para proteger esse menino.
Minha única crítica fica com o fim, que foi o motivo de eu tirar uma estrela da nota final. Considerando o tamanho desse livro e a demora em desenvolver alguns plots, a autora podia muito bem ter usado menos de um deus ex-machina e mais do que tinha entregado até então. Achei as respostas muito fáceis, os planos B muito tirados da cartola. Para as 400 páginas prometendo um fim grandioso, tudo aconteceu de maneira muito... Tá?
"Os melhores Ceifadores não comandam apenas a morte, pequena Zél. Nós também ajudamos os outros a viver."
Preciso tirar um parágrafo para falar a respeito da Nota da Autora no fim do livro e de como foi impactante. A representatividade que esse livro estende vai além de ter toda uma gama de personagens negros e de uma cultura que foge do mainstream sendo exaltada como deve ser; Tomi fala sobre tirania, sobre morte e tortura e sobre como o medo oprime. Mesmo através da magia e de um reino fictício, ela mostra situações reais, ela mostra perdas irreparáveis, vidas tiradas pela crueldade e pelo terror; mesmo num mundo fantástico, ela abriu espaço para discutir sobre a opressão. Sobre as pessoas que foram subjugadas pelo terror alheio, e deu ainda mais espaço para que essas pessoas ergam sua voz. Eu, mulher branca, só consigo imaginar o poder que uma obra dessas consegue passar às vozes para as quais ela é voltada, e por isso é uma história tão importante.
Filhos de Sangue e Osso escorregou um pouco no final, mas em geral foi uma leitura excelente. Tem equilíbrio entre as cenas arrastadas e as de ação, entrega bons personagens (menos você, Inan. Você pode engasgar e morrer) e uma mitologia rica como background de uma trama sobre esperança e liberdade; sobre aceitar sua própria força e lutar para mostrar ela ao mundo.
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