Retipatia 05/04/2020
Um encontro inesquecível!
A leitura contém temas sensíveis, como violência e prostituição infantil.
Uma história entremeada como partes de uma colcha de retalhos, que transita através de anos, personagens e diferentes lugares do mundo para alinhavar as vidas que surgem como sopros da maré, prestes a virar a qualquer tempo.
A escrita da Manuela Marques Tchoe já havia me encantado quando li seu livro de contos chamando Ventos Nômades, que traz um misto de realidade e fantasia a cada conto, me fazendo viajar para os mais diversos cantos do globo em pontes que atravessam o oceano.
Agora, em Encontro de Marés, um romance com força oceânica, temos uma história arrebatadora, numa narrativa que mistura a primeira e terceira pessoas, sem perder o tom, mantendo o interesse forte e a necessidade de desbravar as cidades brasileiras, intensa.
No livro, iremos ter vislumbres de diferentes Brasis e de um povo que se mistura de norte a sul, vivendo entre as mazelas e a beleza com o fulgor que só se encontra nessa pátria.
Ao jogarmos os búzios, encontramos de um lado, em Salvador, a jovem Rosa, estudante cheia de sonhos que vive na casa humilde com sua avó Dalva que faz as vezes de mãe. Os dias pacatos de conversas entre avó e neta sob a janela de casa vendo gente que passa na rua, entretanto, estão contados. Benedito, pai de Rosa, surge como uma tempestade em suas vidas, raptando Rosa. A vida de ambas acabara de ter o curso do destino alterado por uma faca que rasga cada pedaço de futuro.
Viajando pelo tempo, conhecemos Mariana. Uma jovem que se vê obrigada a vir ao Brasil em virtude de seu trabalho na instituição alemã que ajuda crianças carentes das favelas do Rio de Janeiro. Apesar do seu desagrado, o visita se mostra não apenas uma porta para seu passado, mas também, para conhecer um Brasil que vai além dos tiroteios nas ruelas das comunidades e que se estende para a beleza da água salgada do mar.
Seguimos mais um pouco e conhecermos Teresa, mulher batalhadora que sofre com o crescimento de sua filha Janaína, que deseja experimentar a vida nos quatro cantos do mundo, enquanto cozinha beijus para o seu novo empreendimento.
São várias mulheres, com histórias a princípio, completamente sem ligação, mas que vão sendo entrelaçadas a medida que avançamos as páginas. E, quando os búzios caem sobre a mesa, descobrimos que, talvez, os Orixás tenham mesmo todas as respostas que procuramos, mas também que precisamos estar preparadas para recebe-las.
Interligando todos os acontecimentos, sem ordem cronológica, mas de modo algum dificultando a compreensão, a autora narra temas fortes, em especial, acerca da prostituição infantil no Brasil. A maldade, a ganância, todos motores para uma rede de crime que se fortalece no silêncio da impunidade. As personagens da história, sem exceção, irão ver os diversos lados do que compõe a prostituição infantil. Irão lutar, todas elas, para se ver livre do que não lhes fora escrito pelo destino, mas moldado por interesses escusos e sujos daqueles que as veem como nada menos que pedaços de carne, máquinas de produzir dinheiro.
Um tema forte, mas que precisa de debate. Como a autora destaca em nota no fim do livro, o tema é muitas vezes esquecido e colocado sob panos quentes. Sabemos de sua existência, de suas várias formas, mas o silêncio, tanto do poder quanto da mídia, mostra o quanto ainda se precisa avançar em políticas de proteção à criança e combate ao crime.
As mulheres são a força motriz de Encontro de Marés. São elas, na verdade, que fazem o rumo das águas bem mais que as fases da lua ou horas do dia. Elas moldam seu futuro na incerteza buscando que as mazelas de hoje não sejam perpetuadas. De Rosa à Mariana, de Teresa à Janaína. De Dalva à Ulla. De Gracinha à Clarissa. De Luísa a Iolanda. Mulheres que marcam a história com suas próprias histórias. Que mostram que criam a maré de seus próprios oceanos. Não há uma ou outra que seja perfeita, longe disso. São humanas e por isso cravam a realidade numa história que poderíamos ter vivido ou ouvido falar.
Encontro de Marés ainda é um salve para a cultura brasileira, para seu povo, em especial para a cultura baiana, trazendo muito dos ensinamentos sobre os Orixás, especialmente sobre a rainha dos mares Iemanjá. A narrativa é vívida, pulsa sobre a música, os lugares e a cultura, casando perfeitamente com a história que se quer contar, seja sob os olhos de um estrangeiro, seja sob os olhos daqueles que nasceram e vivem nessa terra.
Uma leitura inspiradora e inquietante. Um encontro de águas, de vidas, de passado-presente-futuro. Um encontro de gerações. Um Encontro de Marés.
site: http://retipatia.com/2020/03/26/encontro-de-mares-manuela-marques-tchoe/