spoiler visualizarMaria 03/10/2019
Não julgueis
Em 1962, pouco antes de falecer, William Faulkner fora sabatinado em West Point. Questionado acerca da medida em que personagens mais ou menos pervertidas pode contribuir para elevar o coração do homem, respondeu: "A primeira coisa que um escritor sente é compaixão por suas personagens, como, aliás, pelas personagens de não importa que outro autor. Ele não estima o poder que tem para julgá-las, e essas personagens permanecem com suas taras, quer o escritor queira ou não.Quando conta uma história, parece-lhe necessário, bom, essencial mesmo, ter em conta essa evidência. Não lhes advoga a causa, não as condena; uma vez consciente de seus defeitos, a primeira coisa que deve fazer é amar a humanidade inteira, embora chegue a odiar certos indivíduos. Entre os personagens que criei, há algumas que odeio ferozmente, mas não me compete julgá-las, condená-las: elas existem, fazem parte do quadro em que vivemos. E recusando falar delas não aboliremos o mal."
Aclamado pela originalidade, Faulkner, Laureado com o Nobel em 1949, festejado como um dos maiores autores do século XX, conta-nos aqui uma história sobre o "espírito da retidão puritana" e, ao final, demonstra-nos como o puritanismo pode ser profundamente nocivo.
"Luz em Agosto" é uma história sobre dor, abandono, paixão, negação, morte, desespero.
Através da ingênua Lena, da solitária Joanna Burden, do apaixonado e persistente Byron, do atormentado Christmas, do egoísta e irresponsável "Lucas", do sofrido e resignado Hightower ("Porque não é dado ao homem fazer muita escolha") -e, neste ponto, pergunto-me se, ao escolher os adjetivos para classificar cada um deles, não os estarei condenando em meu juízo interior- compreendemos o alcance da genialidade de Faulkner pois, a despeito das pecualiaridades de cada uma de suas personagens, deparamo-nos com questões que assombram a humanidade inteira.
Há aqui uma história de encontros trágicos - "Talvez seja porque não somente cada qual fica com seu igual; é que cada um nem ao mesmo escapa de ser encontrado pelo igual”- com a morte sendo uma constante e a hipocrisia eternamente envolta pelo manto sacral da crueldade.
Christmas, nosso anti-herói, cujo nome “pode ser de certo modo um augúrio do que fará, se os demais chegam a compreender a tempo o significado”, é alguém que já vem ao mundo “condenado”. Entregue desde cedo a um orfanato, adotado por um homem que, apesar de acolhê-lo, jamais procurou qualquer proximidade afetuosa, tratando-o mais como uma coisa que pudesse ajudá-lo a elevar-se diante de Deus do que como um ser humano com todas as suas vulnerabilidades, deparamo-nos com alguém cuja existência fora silenciada desde o nascimento, cuja dor converteu-se em cólera (o que seria o homicídio se não a ira elevada ao ápice?)
“E foi isso que fez tanta raiva a toda gente: ele, um assassino, andar pela cidade, passeando, muito elegante, como que desafiando a todos para que roçassem por ele, quando devia estar escondido no mato, sujo e coberto de lama de tanto correr”. Se, por um lado, o “destino” de Christmas leva-nos, a despeito de qualquer compaixão que possamos sentir, à descrença na humanidade; por outro lado, Lena e Byron, talvez devolvam-nos a esperança.