Mary Manzolli 02/01/2022
Uma distopia nem tão distópica assim...
Essa é daquelas leituras em que a gente se aventura, descompromissadamente, sem grandes perspectivas. Um dia batendo perna no shopping, comprei numa feira por R$10,00 e resolvi encarar, sem nenhuma indicação.
As horas vermelhas é uma distopia focada no poder de decisão feminina em relação ao próprio corpo. A história se passa dois anos após o Congresso dos Estados Unidos aprovar a "Emenda da Pessoalidade", em que dá o direito constitucional à vida, à liberdade e à propriedade a um óvulo fertilizado, no momento da concepção, de forma a tornar o aborto ilegal em todos os 50 estados; são implementadas punições severas às mulheres que decidem se arriscar a realizar um aborto e às pessoas que facilitam o procedimento. As fertilizações in vitro também foram banidas uma vez que os embriões não podem dar seu consentimento sobre a suas transferências dos laboratórios para o útero.
A história se desenvolve no entrelaçamento das vidas de 5 protagonistas muito diferentes entre si, mas que, sofrem os impactos de todas as restrições a que são submetidas por serem mulheres. Quatro delas vivem numa pequena cidade pesqueira no Oregon e a conexão entre suas histórias fala muito sobre o lugar das mulheres na sociedade, os padrões pré definidos de aparência física, atitudes e pensamentos e o preconceito contra quem escapa aos padrões.
Ro (a biógrafa) tem 42 anos, leciona História na escola da cidade e sonha em ser mãe. Apesar dos inúmeros tratamentos de fertilidade, não consegue engravidar. No entanto, tem pressa em realizar seu sonho, pois o governo está em vias de aprovar uma nova lei chamada de "toda criança precisa de dois", que impedirá mulheres solteiras de terem filhos.
Gin Percival (a reparadora) é uma espécie de curandeira local que vive isolada na floresta. As pessoas a chamam de louca mas sempre é procurada pelas mulheres quando precisam resolver algum problema, cujos maridos ou o restante da cidade não possa tomar conhecimento. Penso que é a personagem mais complexa da estória posto que sua narrativa, por vezes, fica muito desconexa e, de fato, parece que que ela esteja perdendo a sanidade, porém no final tudo faz sentido.
Mattie (a filha) é uma adolescente, ótima aluna, boa filha, com um futuro promissor, é muito amada pelos pais adotivos, que já são idosos, mas descobre-se grávida e não sabe como resolver a situação sozinha.
Susan (a esposa) é mãe de um casal de crianças e casada com o professor de francês da escola local. A princípio nos passa a impressão de levar uma vida perfeita e é objeto de muita inveja, mas conforme avançamos na leitura, aos poucos, vamos conhecendo o outro lado da sua história.
Eivor (a exploradora polar) é a personagem do livro que Ro (a biógrafa) escreve nas horas vagas, uma desbravadora que luta suas próprias batalhas numa época e local muito cruéis para as mulheres. Trechos de sua pesquisa aparecem no livro, alternando com as demais histórias.
O narrador refere-se às mulheres pelo seu papel social (a filha, a biógrafa, a reparadora, a esposa e a exploradora) com a clara intenção de deixar demonstrado o quanto são limitantes as funções sociais esperadas de nós e o quanto, qualquer que seja a nossa escolha, nos levará aos mais variados e injustos julgamentos.
Tal qual "O Conto da Aia" e outras distopias tão em voga nos últimos tempos, as Horas Vermelhas traz à tona a discussão sobre até que ponto o governo pode controlar os direitos de alguém sobre o próprio corpo e o quanto a possibilidade de algo parecido acontecer de verdade, tem nos assombrado cotidianamente. Se um congresso conservador tornar o aborto mais uma vez ilegal nos EUA lhes soa como uma distopia, por aqui é a nossa realidade, e por isso muitas partes do livro podem nem nos parecer tão inconcebíveis.
Apesar de ter gostado do tema e achado a história muito boa, não sei se por culpa do livro ou por causa do meu cansaço de final de ano, achei a leitura pouco fluida e um tanto carregada, me cansava rapidamente e não consegui manter meu ritmo diário. Foi preciso insistir um pouco até a história engrenar e mesmo assim não foi uma leitura tão agradável.
Mas não obstante a minha dificuldade em concluir a leitura, não há como negar que a obra nos traz reflexões, extremamente, profundas e relevantes sobre os papéis das mulheres dentro da sociedade e como as mulheres seguem com suas vidas, planejamentos e atribuições mesmo em meio à grandes dificuldades.
Para uma realidade como a brasileira, As horas vermelhas, é realista demais para ser uma distopia.