Lau 04/03/2024Nas profundezas da crençaEste é um livro muito simples e muito peculiar. Como Pedro Catharina resume no posfácio: "[..] o romance se desenrola em espaços interiores, através de visitas e longas conversas que exploram os pontos de vista dos personagens". É isso mesmo, a história é composta quase inteiramente por meio de diálogos entre um grupo de amigos e reflexões internas do protagonista em seu processo criativo
Esse interessante grupo, formado por um escritor, um médico, um astrólogo, um sineiro e, podemos contar, a esposa do sineiro, traz personagens que estão desiludidos com a sociedade em que vivem e buscam refúgio nas opiniões compartilhadas uns com os outros. O protagonista é um autor de livros já com certo reconhecimento no meio, que claramente já passou da sua fase de brilho no olho e está procurando coisas que o estimulem de qualquer forma possível, até que decide escrever uma biografia sobre Gilles de Rais. Essa figura, conhecida por ser um estuprador e serial killer envolvido com o ocultismo, foi julgado pela Igreja como tal, apesar de depois tê-lo redimido por se arrepender de seus pecados. Bom, orar apaga todos os seus crimes, mas não o tribunal civil, pelo qual foi condenado à morte
O importante é que Durtal, o escritor, para desenvolver sua biografia também cria o desejo de se envolver ele mesmo com assuntos relacionados ao satanismo, o obscurantismo, a magia etc e com o grupo de amigos que faz no caminho, pode se encontrar todos os dias para um belo jantar e debater livremente a respeito do tema
Mas o grande ponto do livro não é o satanismo, não são os rituais, não é a descrição da violência, do erotismo - é uma insatisfação. Huysmans, o autor, se coloca no lugar do protagonista de reflexão acerca da era que estava vivendo, o final do séc. XIX que, por sinal, é mesmo permeado por muitas mudanças - inclusive pelo racha nas crenças tradicionais provocado pelo positivismo. E, apesar de ter um estilo naturalista, ele é desencantado com esse mundo em que as pessoas tentam descrever tudo cientificamente, acham que têm todas as respostas e no fim, muitas coisas continuam sem explicação. Ele quer trazer essa insatisfação ao leitor, mostrar a decepção dele em relação ao século e como, no fim das contas, a humanidade não evoluiu em nada
Mas há uma ironia engraçada nesse livro - que eu acredito ter sido intencional, e se não, continua sendo uma ironia - porque nesses diálogos, os personagens acabam fazendo uma ode à Idade Média como se fosse uma época boa, uma era romântica e inocente, enquanto consideram seus contemporâneos todos farsantes a enganar as pessoas, diferentemente da verdadeira magia do passado. Se o autor, ao mesmo tempo, tenta criticar a sociedade industrial, também acaba permitindo uma crítica ao pensamento retrógrado dos próprios personagens. Não só relutam em aceitar a ciência, ainda principiante demais para merecer sua credibilidade, como distorcem a visão sobre aquilo que chamam "bons tempos" numa nostalgia daquilo que nunca viveram. Ainda que, para os padrões de hoje, a medicina oitocentista fosse tão mágica quanto na Era das Trevas, a desestabilização da religiosidade pelos novos conhecimentos gera incômodo e resistência. Se é possível interpretar dessa forma, é incrível ver como esse momento de ruptura se reflete tão profundamente na obra