spoiler visualizarRick Shandler 31/03/2024
Na praia - Ian McEwan
A complexidade dos relacionamentos amorosos está entre os mais intrigantes mistérios da experiência humana. Passam os séculos e a humanidade não perde seu fascínio pela vida a dois. Falar de amor moveu e segue movendo poetas, músicos, escritores e filósofos. Ian McEwan, em Na praia, nos oferece um dos mais elegantes vislumbres do tema.
É de entendimento geral que não é de hoje que as pessoas se juntam para viver uma vida em comum. Legalmente, falamos de uma convivência pública, contínua e duradoura com o objetivo de constituir família. É lógico que estes conceitos legais, conforme a evolução da sociedade, são suscetíveis a alterações na sua interpretação. Por exemplo, hoje o que é uma família? Ou ainda, hoje o que é duradouro? De qualquer forma, nessa mutabilidade do entendimento do que é um casal, parece haver um norte, um rumo, um ideal a ser seguido e este ideal é a vontade do indivíduo. O casamento, seguindo uma evolução liberalista e acima de tudo individualista, deixa de ser uma instituição pautada muito mais pelo interesse da família e passa a ser pautada pela vontade dos indivíduos. E aí, parece que a coisa consegue ficar ainda mais complicada.
Florence e Edward são dois jovens, o que por si só já pressupõe não só pessoas com pouca idade, mas também pessoas minadas por sonhos, objetivos e potencialidades. Eles se conhecem. Sorriem. Conversam. Encontram gostos em comum. Encantam-se. E aí já era, todo mundo já passou por isso. O frescor e o êxtase do início de um relacionamento, onde como em um grande quebra cabeça tudo parece ir se encaixando. Mas, começam a aparecer algumas peças mais tortuosas, mais difíceis de encaixar. As dificuldades de conciliar dois passados e entrelaçar dois universos distintos começam a ficar evidentes. Para Florence e Edward o timing não podia ser pior e o grande choque de realidade se deu em plena lua de mel. Vem a briga, a discussão, a vergonha, o orgulho. Cada um para um lado. Um casamento não consumado. Um futuro que era, mas não foi. E é aqui que vem a grande questão que McEwan nos propõem, tudo isso se deu aquém da vontade de ambos.
A vontade pautou o início do relacionamento de Florence e Edward, mas não pautou seu fim. Não houve no início do relacionamento nenhuma interferência familiar ou algo do gênero. Florence e Edward, assim como grande parte dos casais de hoje, conheceram-se, apaixonaram-se, amaram-se e decidiram ficar juntos. Entretanto, Florence e Edward, assim como grande parte dos casais de hoje, não acabaram ficando juntos, por mais que quisessem. Ambos fracassaram. A liberdade e a vontade passaram de grande fiadoras de uma história de amor para o papel de algozes. Eles se amavam, queriam ficar juntos e não havia nada que impedisse essa história de acontecer, a não ser eles mesmos. A mesma liberdade que favorece o início do relacionamento, facilita seu término. Após o primeiro conflito fica evidente o despreparo de ambos, que mostram-se incapazes de sobrepor suas dificuldades. Seja pelos próprios traumas, pela bagagem que cada um deles traz, seja pelos tabus e pressões da sociedade, não há a menor chance de diálogo. Assim, contra a vontade de ambos, encerra-se mais uma história de amor. Edward não estava lá na na sua poltrona da terceira fileira da estreia do concerto de Florence.
Na praia é um livro de uma beleza ímpar. Falar de amor e relacionamentos sempre foi e sempre será difícil por um lado, mas rico por outro. Ver grandes escritores como McEwan esbanjarem sua elegância e sensibilidade em tais temas é um deleite. Tem que ler.