alineaimee 26/03/2022Realismo e misterioOlhares, cumprimentos, encontros, recados fortuitos. Trânsito e interação intermediados por percepções metafísicas e espirituais. É assim que entramos em "Um exu em Nova York", essa coletânea de título assaz magnético, da autora mineira Cidinha da Silva.
Vencedor do prêmio Biblioteca Nacional em 2019, o livro traz textos que unem contemporaneidade e ancestralidade de modo muito eficiente: por um lado, narrativas curtas, ágeis, híbridas, sincopadas e marcadas pela coloquialidade, por certo mistério e pelo humor; ao mesmo tempo, o subtexto das culturas e religiões de matriz africana, o cotidiano violento e precários de pobres e pretos, a história e as lutas dos povos escravizados, que várias vezes são evocadas com beleza poética:
"Como no poema, os dias mais felizes da vida brotavam como erva benfazeja. O céu ruborizou um abóbora iansânico no entardecer dos dias frios. Oxum ria um riso de menina arteira. Os orixás, em festa, criaram um mundo novo, sem aquele trabalho todo que fora carregar o saco da existência."
Pode-se dizer que Cidinha se inscreve numa linhagem de Realismo Mágico, em que o fantástico está relacionado a saberes e crenças locais que são bastante reais para quem os professa. Muito me interessam os livros em que as manifestações metafísicas estão incluídas como parte da experiência humana: sonhos mensageiros, visões, aparições dos mortos e de entidades, inspirações inesperadas, dobras temporais. Sempre se pode tentar oferecer explicações materialistas para esses fenômenos, mas a verdade é que muitos de nós os experienciam, pelo menos em alguma altura da vida, como mistério. E Cidinha espalha toda sorte de vivência mística em histórias que vão do Brasil colonial aos dias de hoje, de contextos complexos que exigiam planejamento a flagrantes da correria pós-moderna.
E essas histórias nos ajudam a lembrar que, por mais descobertas e respostas que a ciência ofereça, boa parte da vida acontece sob outros termos. São textos que nos mostram que podemos assumir alguma humildade, preservando ainda o fascínio. Até porque, como a autora muito bem demonstra em seus contos, é justamente algo de misterioso que tantas vezes nos dá força, resistência e propósito.