Pedro Costa 31/12/2023
Olha Quem Fala...
Recebi como presente de uma amiga o livro A Classe Média No Espelho, de Jessé Souza (entre outras qualificações, sociólogo e ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – indicado por Dilma). Em retribuição, esta amiga pediu-me uma análise crítica a respeito do conteúdo, razão principal desta resenha. Agradeço a ela pela oportunidade (já que eu não o teria lido por iniciativa própria), sobretudo pela surpresa com o resultado:
Leitor contumaz que sou, eu costumo dizer que, ao concluir a leitura de um livro, se nele eu tiver encontrado um único parágrafo que valha a pena ser lido, o trabalho de encontra-lo estará justificado... nesse aspecto a surpresa foi positiva, posto que admito haver aproveitado muito mais que um parágrafo. Para quem leu os livros anteriores do autor pode-se dizer que esta leitura é dispensável, pois trata-se de uma repetição de assuntos que ele mesmo já dissecou à exaustão; entretanto, para quem não os leu, com o devido cuidado a leitura deste último pode ser um tanto enriquecedora.
Somadas, a parte que analisa a origem da moralidade e a que trata da construção da classe média brasileira disponibilizam ao leitor 71 páginas bastante instrutivas e proveitosas (cerca de 25% do livro), em que pese o fato de algumas delas estarem visivelmente contaminadas pelo que caberia aqui chamar de “desonestidade intelectual” do autor (dada sua reconhecida erudição no assunto), desvios que podemos creditar à sua explícita inclinação ideológica e razão da 1 estrela na minha avaliação.
No capítulo Golpe de 2016 ele enrola o leitor ao longo de 20 páginas sem valer-se de uma única linha amparada em argumentos concretos que caracterizem o tal golpe. O próprio autor admite (Pág. 158) que “o Ministério da Justiça da ex-presidenta (sic) Dilma, urdindo o aparato legal para as leis de exceção utilizadas mais tarde pelos inimigos para golpear a própria presidenta (sic) e a democracia. (...) no próprio Ministério da Justiça da presidenta (sic) depois deposta montou-se o arcabouço legal”, ou seja, devemos concluir que a Lei aplicada contra os adversários é a democracia em pleno exercício, mas a própria “mãe dos pobres” ser pega em flagrante delito contra uma lei promulgada por ela mesma, aí é golpe! (Atualmente, por muito menos tem gente sendo presa, acusada de “ataque às instituições democráticas”).
Seguindo neste molde, todo o resto é pura panfletagem, em escancarada campanha política pró PT. Na segunda metade do livro, em Trajetórias, o leitor percorre 120 páginas recheadas com uma mistura de relatos supostamente verídicos mesclados a sofríveis ensaios de ficção. Se por um lado, na área de pesquisa em sociologia o autor é doutor e merece algum respeito, por outro, em escrita criativa ele precisa praticar um pouco mais, pois deixa a desejar no quesito “verossimilhança”; alguns dos vilões ali retratados são verdadeiras caricaturas, típicas personagens de filmes classe B, que não convencem, a não ser como uma possível projeção de instintos reprimidos (torçamos sinceramente para que não seja o caso!). Como não é apresentada nenhuma metodologia eventualmente aplicada na contagem ou classificação dos tais relatos, ainda que supostamente verídicos, eles não evidenciam nada além da visível manipulação da opinião do leitor pela gritante seletividade, já que as narrativas publicadas são escolhidas a dedo, fazendo com que todo personagem simpático, honesto e bem-intencionado vote no PT e toda mulher inteligente vote na Manuela d’Ávila, Márcia Tiburi ou na Marina Silva, enquanto cada exemplar de pessoa machista, tarada ou portadora de toda e qualquer característica desprezível, com certeza vota em Bolsonaro! Não há estatística nenhuma; por mais que tais personagens existissem de verdade, seria tomar o todo por uma parte.
Isso posto, e reconhecendo mais uma vez a qualidade instrutiva do material aproveitado de publicações anteriores do autor, vamos analisar os temperos de que ele se serve para conferir textura, aroma e sabor, além da utilidade prática aparentemente pretendida pela presente obra: uma pitada de tolice, uma generosa dose de desrespeito ao trabalho de personalidades consagradas pela própria história e, “last but not least”, uma mão cheia da já mencionada desonestidade intelectual, recorrente nos escritos de militantes esquerdistas que ostentam alguma instrução.
Senão vejamos: o amor (aqui entendido como base da família e de uma vida sentimental estável) é classificado pelo autor como uma “ideia-força” que não passa de invenção cultural e histórica, criada pelas elites artísticas e intelectuais no início do século XVIII e posteriormente imposta ao resto da população pelo expressionismo e pelo romantismo... não surpreende, dado que, segundo o autor, para se considerar um intelectual o sujeito precisa ser educado nos moldes de Marx e Gramsci; só um pouquinho de Shakespeare já o teria poupado de proferir uma tolice de tal magnitude.
É patente o desrespeito para com o legado de seus predecessores Raymundo Faoro (que foi presidente da Ordem dos Advogados do Brasil e membro da Academia Brasileira de Letras) e, mais notadamente, Sérgio Buarque de Holanda (um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores), ambos juristas, historiadores e sociólogos como ele. Desrespeito semelhante é relegado ao erário quando menciona (Pág. 272) “a merreca de cerca de 2 bilhões de reais que a Lava Jato diz ter recuperado para os cofres públicos”. Dispenso ocupar-me aqui da deselegância nas menções aos seus colegas pensadores por entende-la como mera estratégia de mercado (vulgaridade vende), já que a atitude, por chula que seja, rendeu-lhe popularidade e um espaço considerável na “mídia venal” que ele tanto denuncia; ademais, esse tema já foi amplamente debatido nos veículos apropriados e me parece assunto esgotado. Porém, o autor também atribui a si mesmo a criação do conceito “liberal vira-lata”, apropriando-se sem a menor cerimônia da ideia de Nelson Rodrigues, que originalmente cunhou a expressão “complexo de vira-lata” para explicar a baixa autoestima do brasileiro em relação aos estrangeiros, inspirado na derrota da seleção brasileira pelo Uruguai, em pleno Maracanã, na final da copa de 1950. Para um escritor isso é imperdoável.
Contudo, o maior mérito do livro, a meu ver, são as denúncias que ele faz do ativismo judiciário e da manipulação midiática: “resta à mídia comprada pelos bancos, assim como aos juízes e políticos também comprados, apenas o silêncio. Um assalta e rouba à luz do dia; e os que deveriam informar e punir distorcem a realidade e silenciam. A corrupção trilionária do sistema financeiro tem que ser ocultada e acobertada pela mídia e pelo Poder Judiciário de modo a enfraquecer a política perante os ditames do mercado financeiro (...). Você, leitor e leitora, tenha cuidado e não esqueça o aviso: quem denunciar é que corre o risco de ser preso. ” (Pág. 211). E mais... “a imprensa mente, invertendo causa e efeito, tornando invisível o assalto real e distorcendo sistematicamente a realidade. (...). Como entre 300 a 400 deputados no Congresso têm como única função intermediar o assalto ao Estado pela elite rentista e vender seu voto a quem pagar mais, os bancos podem mandar qualquer papel higiênico sujo que eles assinam sem olhar. (...). Assim se estabelece a corrupção legalizada. Por que não chamar esse procedimento de corrupto? Porque foi legalizado pela compra de deputados venais? Então a mera aparência de legalidade do procedimento é mais importante do que seu resultado: a rapina multibilionária da sociedade inteira, inclusive da massa da classe média? Uma sociedade enganada deste modo tão pueril foi realmente feita de imbecil, não concorda, caro leitor e cara leitora?” (Pág. 270). Em que pese a seletividade nos nomes e fatos mencionados, do tipo “ninguém denuncia FHC e Alckmin”, ou então como no “episódio das malas supostamente dirigidas a Aécio e Temer, mostradas na TV”, que, segundo o autor, comprovam que “os políticos não passam de lacaios nesse esquema” (Pág. 269), não podemos esquecer que o livro foi publicado em 2018, pouco antes da eleição do Presidente Bolsonaro, de modo que o autor não tinha como adivinhar tudo o que o Brasil ainda enfrentaria... a “farra do Covid”, a “descondenação” de Lula e a consequente extinção do crime de corrupção no Brasil e, finalmente, o espetáculo das “urnas eletrônicas infalíveis”... assim, temos que perdoar o fato de ele igualmente mencionar eventos como “as malas do Geddel” (Pág. 174), “Aquilo que aquele maluco da Odebrecht fez, ao criar um departamento de propina” (Pág. 175), o codinome “santo” como “suposta alcunha de Alckmin no livro da Odebrecht” (Pág. 176), ou simplesmente citar o Ministro Barroso, do STF, como “arauto da visão liberal-chique” (Pág. 153), ou Cabral como expoente da corrupção no Rio (Pág. 221).
Hoje, depois de ouvir o Ministro Gilmar Mendes, do STF, declarar em entrevista, sem o menor resquício de constrangimento, que “Lula não estaria no Planalto se não fosse o STF”, eu adoraria ver o autor do livro vir a público falar mais sobre todas essas denúncias... Presumo que ele não virá; e que apesar de tudo o que já foi trazido à luz, seguirá insistindo em defender com ardor a tese de que atacar a corrupção generalizada do Estado é apoiar os interesses das “elites”. Enfim, o que destruiu a Petrobrás não foi a corrupção e os bilhões roubados e enviados ao exterior, mas sim a investigação e denúncia desses crimes. Os verdadeiros vilões não são os que roubaram, mas sim os que denunciaram e recuperaram parte daquele roubo. Salta aos olhos a insistência em atacar o “mito vira-lata” da corrupção restrita à política, numa defesa característica de quem não dispõe de argumento melhor... afinal, não são só os políticos que roubam, então, por que denunciá-los?
(Parágrafo suprimido - pelo visto a censura também já chegou aqui)
Em tempo, os grifos são meus. E que fique bem claro, exceto as citações tiradas do livro (todas entre aspas e em itálico), tudo o que aqui está exposto é apenas a minha opinião pessoal sobre a mencionada publicação...
Contudo, a quem ainda quiser se arriscar,
Boa leitura!
Pedro Costa.
site: “Pensando Bem...” (https://pedrolcosta.blogspot.com/)