Antonio Luiz 11/08/2010
Zé do Caixão descobre Dan Brown
Um dos piores livros que já me caíram nas mãos. A primeira parte, na qual um policial investiga um suicídio e se envolve na trama, que deveria ser relativamente realista, mostra muita falta de verossimilhança e de conhecimento dos temas relevantes para o enredo. A segunda parte, na qual ele se transforma em imortal e deveria ser um voo de fantasia, é absolutamente ridícula e pedestre. E o final é vergonhoso.
O protagonista e narrador se chama Rafael. Todo o livro é apresentado como a transcrição de seu diário, encontrado numa biblioteca. Começa a aventura como “detetive-chefe” da polícia civil de Hortolândia, SP. A função é chamada neste estado de “inspetor”, mas isso é o de menos. Atrás de explicações para um suicídio em sua cidade, ele vai à capital atrás de um “pesquisador da Bíblia” que poderia ter informações relacionadas ao mistério. Encontra-o, mas dias depois também o suposto erudito se suicida.
O segundo suicídio, ocorrido num prédio de apartamentos de classe média do Itaim Bibi no início de 1978, é investigado pela Polícia Federal. É um contra-senso, pois esta só investiga crimes relacionados a terrorismo ou tráfico de drogas ou que envolvem o interesse da União, como contrabando, corrupção e sonegação. O autor não faz nenhuma tentativa de explicar isso.
O pior é que o detetive de polícia entra no prédio como um ladrão para levar documentos do falecido – e quando os “policiais federais” se aproximam, joga-se do quinto andar – nada menos – para fugir deles, quando tinha razões perfeitamente plausíveis para pedir informações sobre a investigação ou para participar dela. Machuca-se um pouco, mas, absurdamente, não quebra nada – e de forma ainda mais absurda, vê-se num “beco escuro e malcheiroso”. No Itaim Bibi, bairro de alta classe média?
E piora. O detetive estropiado pega um táxi para voltar a seu hotel, mas não tem dinheiro no bolso. Para fugir sem pagar, pula do táxi em movimento, machuca-se mais um pouco, não consegue se levantar e é brutalmente espancado pelo taxista, que também espalha seus preciosos documentos. Sem reagir, dar carteirada, ou mostrar o distintivo – e isso se dá em plena ditadura militar! Não que o escritor pareça ter a menor consciência disso...
O detetive acaba por ser ajudado por desconhecidos, os “Black Angels”, cujos nomes, todos de “anjos cabalísticos” bem conhecidos, revelam desde já sua natureza para o leitor minimamente escolado. Consegue voltar ao hotel , onde é encontrado pelo chefe da polícia Hortolândia que “acompanhado de dois soldados” (sem cabimento, pois se trata de polícia civil) foi pedir explicações a Rafael, que deixara de se comunicar. Encontra-o em estado lamentável, “demite-o” no ato e o ex-detetive vai receber a “rescisão”, como se fosse um balconista demitido de uma loja. É não ter a menor noção de como funciona o serviço público em geral e a polícia em especial – sequer a noção de que é preciso pesquisar sobre aquilo que não conhece e é importante para a história.
Nem se fale, então, dos aspectos “bíblicos” e supostamente eruditos. A ideia central de que “Sheol” – literalmente “cova” em hebraico, termo usado para se referir à morte nos textos bíblicos ou a um submundo dos mortos (semelhante ao Hades grego) no judaísmo pós-exílio – é um codinome para “Caim” é um completo absurdo, mas mais disparatado é o primeiro “especialista” consultado pelo detetive se abismar quando é perguntado sobre o significado da palavra, como se fosse um segredo. E o segundo “especialista”, a julgar pelas anotações resgatadas pelo ex-detetive, trabalhava exclusivamente com traduções da Bíblia para o português, em vez de recorrer aos textos originais, hebraicos, aramaicos e gregos.
Os acontecimentos que se seguem nos meses seguintes à demissão do detetive constituem as páginas menos lamentáveis do, digamos assim, romance. Rafael, falido, refugia-se num prédio invadido na “Praça Ramos” (de Azevedo), sem luz e água.
Não há nada parecido nessa praça, enquadrada pelo Anhangabaú, o Shopping Light, o CBI Esplanada (um prédio comercial de alto padrão, que abriga escritórios da Klabin, o instituto FHC e importantes associações comerciais) e o Teatro Municipal – este rodeado, por sua vez, de prédios comerciais de variadas categorias.
Mas perdoemos isso. E também o posfaciador Causo, que diz que o local está “nas imediações” da Catedral da Sé (a distância é de mais de um quilômetro). O que ameniza o sacrifício de ler o texto é que há algumas cenas convincentes da vida em prédios assim – que realmente existem em outras partes do centro de São Paulo – e Rafael tem a solidariedade de vizinhos de corredor. Um travesti e um “roqueiro” cabeludo de jaqueta de couro preta o socorrem nos momentos difíceis. Esse momento de simpatia por homossexuais, pelos pobres e pelos excluídos é a única coisa de bom em todo o livro.
O que se segue, porém, é constrangedor. Rafael é atacado pelo vilão Caim em pessoa e salvo pelos seus vizinhos, que então se revelam como “anjos caídos” do grupo que o socorrera no incidente com o taxista – e explicam ao ex-policial, agora um marginal cabeludo como eles, que o toque de Caim o transformou em um “imortal”. E então, o autor estraga tudo. As explicações dos anjos caídos sobre sua luta milenar com Caim são pueris e incoerentes e o que vem depois é pior ainda. Abandonai toda esperança de um desenvolvimento interessante, ó vós que chegastes a este ponto. O único consolo é que a ruindade do texto chega ao ponto de torná-lo involuntariamente cômico para o leitor com senso de humor – o equivalente literário de um filme trash à maneira de Zé do Caixão, Alan Smithee, ou ainda pior.
Para que não se pense que o resenhista está exagerando, vão aqui alguns trechos:
“Para piorar a confusão em minha, [sic] Lameque disse que o travesti Suzetti também era um dos anjos caídos e que seu nome real era Ieialel. Ele tinha nascido anjo e era mais antigo do que o próprio Qayin. Seu pecado foi ter sido enganado pelo querubim Samael e, juntos, terem criado uma política que ia contra as ideologias do Criador: não seguir ordens e punir severamente os seres humanos por qualquer tolice que cometessem.” (pág. 85)
“O escritório dos Black Angels ficava em uma travessa da Avenida Brasil, em uma rua ao lado da Igreja Nossa Senhora do Brasil, obra de requintada arquitetura gótica, simplesmente magnífica”. (pág. 90)
Um mínimo de conhecimento de história da arte – ou uma visita ao Google, pelo menos – teria poupado ao autor o vexame de chamar de gótica essa igreja neocolonial, imitação do barroco tardio, na esquina com a rua Colômbia. Mas o auge do ridículo se encontra no “manual do imortal” que é então revelado ao recruta. Seguem algumas amostras desse texto impagável, que se estende das páginas 91 à 93:
“... o anjo caído disse: ‘Este é o manual dos imortais, escrito em sírio-aramaico há alguns milênios pelo nosso amigo Ieialel, o anjo traído por Samael. A linguagem é arcaica, pincelada de muitas metáforas e significados que não fazem mais sentido nesta época, mas como grande conhecedor dessa língua extinta, adaptei as regras para a nossa época, numa linguagem mais compreensível’. (...)
Transcreverei abaixo as milenares regras do anjo caído Ieialel - a antiga Suzetti - neste diário:
Procedimentos que todos os imortais devem seguir:
1 - Seguir todas as regras do Manual do Imortal, escritas pelo segundo anjo caído, Ieialel (...)
5 - Para os recentes imortais: um prazo de 100 anos para escolherem de que lado pretendem lutar: o lado do bem ou do mal. (...)
13 - A organização Black Angels terá vários líderes, entre eles: Yesalel, Sitael, Achaiah, Hacamiah, Reyel, Omael e Mebahiah. Cada um será designado para liderar um setor dentro da organização (...)
Omael: zelador do bem-estar dos anjos caídos, da saúde dos corpos dos mortais que foram possuídos pelos imortais, além de ser nutricionista, liderando e trabalhando na variada e complexa alimentação de todos os imortais, juntamente com outros cozinheiros e chefes de cozinha.
Mebahiah: responsável por cuidar do visual dos imortais, para sempre mantê-los na moda, independentemente do local e da época. (...)
15- Deus e Samael estabeleceram o acordo de manter o equilíbrio, dando o livre arbítrio para cada ser vivente escolher o seu lado, o Yin e o Yang. Mas Qayin, filho de Samael e Lilith, quebrou o acordo seguindo os conselhos de sua mãe. (...)
O Manual do Imortal é um tesouro que se equipara à Arca da Aliança ou ao Santo Graal”.
Não é mesmo uma preciosidade? Se Woody Allen tentasse criar uma sátira sobre um incompetente tentando imitar Dan Brown, faria com mais estilo, mas não seria mais hilário.
O que vem a seguir,nas páginas 97 e 98, mostra quão mesquinhas e egoístas são, no fundo, as aspirações por trás do longo discurso sobre solidariedade, mistérios bíblicos, Bem e Mal, Anjos e Demônios:
“Depois de ouvir os preciosos procedimentos do Manual do Imortal ditos pelo anjo caído e mentor Yesalel, retornei às 2h da manhã ao velho apartamento para pegar alguns pertences. Acordei Lameque e Ieialel e contei a eles onde estive, além de agradecer a Ieialel pelo excelente manual (...) Yesalel me deu um bom dinheiro para que eu pudesse vir até meu apartamento pegar os meus pertences e depois retornar de táxi até a Black Angels. Como o dinheiro que ele me forneceu daria para me manter tranquilamente por mais de um mês, convidei Lameque e Ieialel para um almoço com direito a vinho importado para comemorarmos minha imortalidade. Sem hesitar, eles aceitaram (...)
Estou hospedado em um hotel luxuoso, digno de reis, situado na região dos jardins, próximo à Avenida Paulista (...) Yesalel me encaminhou ao setor financeiro da Black Angels e apresentou o encarregado, o anjo caído Hacamiah. Na presença de outros dois anjos caídos, pediu que me auxiliassem no preenchimento de alguns papéis para dar procedimento à abertura de uma conta corrente em um banco, pois me seria fornecido um salário mensal equivalente a 30 vezes o que recebia anteriormente, quando era um simples detetive de polícia. Preenchi outros papéis e, dos que me lembro, um era para a aquisição de um Lincoln Continental Mark V da cor vermelha, outro para encher o tanque quando bem entendesse e outro era para o luxuoso hotel onde estou hospedado por conta da Black Angels.
Após o encontro com Hacamiah, Yeialel me encaminhou para o setor do anjo caído Mebahiah. Era um setor diferente dos outros que tinha visto dentro da organização, cheio de manequins, espelhos, revistas de moda, estilistas, manicures, cabeleireiros e roupas de todos os estilos e cores possíveis.
Mebahiah era um anjo peculiar. Usava roupas alegres e de fino trato, diferente dos outros anjos caídos que abusavam do preto. Sai [sic] de lá com um visual completamente diferente. Mebahiah bem que tentou cortar meus cabelos compridos, mas não deixei. Então, depois de muita insistência, deixei que fizesse relaxamento e depois escova, e até que ficou bom. (...)
Depois de um breve e delicioso coffee-break oferecido pelo anjo Omael, fui levado ao setor do anjo Reyel, que me inscreveu em alguns cursos internos da organização, iniciando com aulas de inglês, português, literaturas, etiqueta, culinária nacional e estrangeira, yoga e tai chi chuan. Depois de concluídos eu passaria para a segunda etapa.
Estou feliz, apesar do medo da novidade de ser imortal e vinte anos mais jovem”.
Se ao menos o protagonista tivesse tirado algum proveito de suas aulas de “literaturas”... Mas como sugere esta amostra, o livro é, no fundo, sobre a fantasia vulgar de ganhar de graça todas as comodidades e luxos de que pode gozar um multimilionário ou um alto executivo de transnacional (até onde alcança a imaginação de um autor de classe média), sem trabalho ou responsabilidades.
Tudo é dado de graça, não só sem motivo, como contra qualquer lógica, pois se trata, supostamente, de uma sociedade secreta cuja existência e atividades são mantidas há milênios sob o mais absoluto sigilo. Teria sentido alguém que quer permanecer discreto desfilar com um Lincoln vermelho por São Paulo? E, como se verá, todos os “anjos caídos” passeiam em Lincolns e, quando não, em motocicletas Harley-Davidson...
Qual o sentido de todo esse luxo (palavra incansavelmente repetida no livro, por páginas e paginas) e, mais que isso, de ostentação grosseira de novo-rico (ou mesmo de marginal enriquecido por meios duvidosos)? Alimentar a fantasmagoria de uma ascensão social instantânea, sem trabalhos, riscos, conflitos ou um preço espiritual, pode-se suspeitar. E que permita, além do mais, provocar à vontade a inveja dos mortais comuns, é claro. Seguem-se estas pérolas de sabedoria e espiritualidade:
“É bom ser imortal, pois não tenho mais as velhas preocupações com a saúde, muito menos com a morte”. (pág. 102)
“É incrível, mesmo sendo imortal, tenho prazer em fazer compras”. (pág. 105)
Mas como o protagonista não pode passar as trinta páginas que restam até o fim do livro simplesmente realizando seus sonhos de consumo, encontra distração em ser perseguido por Caim. Não se explica, em parte nenhuma do livro, por que esse ser bíblico e multimilenar, com poderes capazes de abalar o mundo, perde seu tempo possuindo pobres coitados e brincando de pega-pega com os “anjos caídos”, sem que uns ou outros saiam de São Paulo. Por fim, na página 106, protagonista e antagonista se encontram, conversam e tomam café juntos:
“Afinal ele tinha, sim, um ponto fraco, e em parte era igual aos seres humanos: perverso como poucos e sentimental como muitos (...) Já no terceiro cafezinho, o que ele falou, chegou a mexer um pouquinho com meus sentimentos(...)
‘Sabe qual foi o meu maior pecado? Tentar agradar o criador com oferendas. Meu irmão Abel sempre foi melhor do que eu em todos os aspectos. Ele era mais inteligente, mais bonito, mais querido. Sou imortal e muito mais poderoso para os humanos, mas não passo de um condenado das trevas, submisso aos desejos de minha mãe, escravo de suas ordens. Sim, gostaria de ser livre, assim como você e os outros anjos caídos, mas a realidade é essa e já estou acostumado a ela. Possuir, enlouquecer, trucidar e exterminar os humanos, é isso o que sei fazer, somente isso.”’
E mais uma vez, presenciei o demônio chorar, só que desta vez não escondia suas lágrimas e não tinha vergonha de expor seus sentimentos para mim (...)
(...) Você paga a conta? Pois esse pobre cavalo que estou possuindo não tem nem uma moeda’ (...) ‘Não vou deixar de possuir os humanos e muito menos de enlouquecê-los e matá-los, mas como estou grato pela sua preocupação e sugestão de libertação, algo que já tento fazer há milênios, vou reduzir as mortes’.”
Depois da heroica e generosa façanha de pagar três cafezinhos para Caim, o protagonista volta ao que interessa: luxo e compras.
“O jeito de Mebahiah é muito semelhante ao da falecida Suzetti, com a diferença de que Suzetti não era tão requintada e chegava até a ser engraçada. Mebahiah é um figurinista e estilista, com um forte sotaque francês. Os traços do seu rosto são delicados, seu andar e seus gestos são como plumas (...)
Tomamos chá enquanto conversávamos sobre moda. Mebahiah recordou dos velhos tempos, da época bizantina e das extravagantes roupas na cor roxa, e também das perucas e rendas usadas pelas mulheres e homens da idade moderna. Vi seus olhos brilharem quando falou que conheceu e elaborou o figurino do Rei Luis XIV de Bourbon, o Rei-Sol (1638-1715), moda que perdurou por cerca de 150 anos (...) Após o chá e a aula de moda, aproveitei e visitei outros anjos, pois desejava iniciar os cursos de aperfeiçoamento”. (página 109)
Na página 114, descobrimos mais um segredo multimilenar: como o Diabo conseguiu seus chifres.
“Samael, o mestre do inferno, segue suas próprias regras e jamais quebrou o acordo que selou com Deus, mas sua própria ex-amante e esposa o leva à loucura, semelhante a algumas mortais. Fontes disseram a Ieialel que Samael não mantém relações conjugais há quase dois milênios, depois que flagrou Lilith de conversas e carícias com um tal Bar Abbas”.
“Fontes disseram” soa a imprensa marrom. Vale notar também que, embora notavelmente simpático à homossexualidade, o texto é de uma misoginia impressionante, sem mostrar qualquer consciência disso. Nem a Igreja medieval foi tão radical no seu desprezo ao sexo feminino. As únicas três mulheres que aparecem (muito brevemente) ao longo de todo o romance estão possuídas por Caim e todo o mal provém não do Diabo ou do pecado original, mas da primeira mulher, Lilith. Até o senhor do Inferno é descrito como um sujeito cordato, que respeita seu pacto com Deus e tem acordos de cavalheiros com os “Black Angels”.
Chega-se ao ponto de negar a Mary Shelley a autoria de sua obra mais conhecida, “Frankenstein”, para atribuí-la ao marido Percy, considerado, nas “fichas” das páginas 62 a 72, como uma das celebridades possuídas por Caim em épocas em que o arquivilão parecia mostrar mais gosto, inteligência e amor-próprio. Outras são Vlad Tepes, a condessa Báthory, John Milton, Thomas Chatterton, Robert Louis Stevenson, Aleister Crowley e Jim Morrison. Chega-se a pensar que o autor, sendo incapaz de fazer melhor, quer lançar a suspeita de que qualquer escritor ou artista que se revele mais hábil e inspirado deve ter parte com o diabo. Até Platão, conta-nos em outra passagem, plagiou Caim...
Na página 114, somos brindados com mais consumo e novos “segredos”:
“Passei a virada do ano com Lameque. Infelizmente, ele não me deixou beber excessivamente, apenas conversamos e ceamos carne de carneiro assada na brasa com molho de hortelã (...)
(...)O primeiro mortal transformado em imortal era uma mulher, nascida em meados do ano de 1200, numa aldeia chamada Rennes-le-Château (...) O segundo mortal transformado em imortal nasceu no Japão no ano de 1568 e foi um grande companheiro do xogum Tokugawa Leyasu [sic] (...) Minha história seria mais uma acrescentada à lista dos poucos mortais que se tornaram imortais.
Como podem notar, a vida de um imortal não é agitada, nem imagino o que terei que fazer para me distrair eternamente”.
Se ele não sabe o que terá de fazer para se distrair, imaginem o leitor, diga-se de passagem. Mas continuemos:
“Sai [sic] com meu Lincoln para espairecer, mas com o hábito de sempre. Não conseguia relaxar (...)
Foi nessa noite acidentada que um motoqueiro se aproximou de mim com sua Harley-Davidson. Quando senti o calor do motor e ouvi o ronco do escapamento, o motoqueiro virou para mim com seus olhos demoníacos, revelando Qayin, o milenar demônio. Meu coração acelerou e o calor tomou conta do meu corpo de tal maneira que tive que tirar a camisa às pressas. Travei os dentes com tanta força enquanto o demônio acelerava ao meu lado que senti um deles explodir dentro da boca, causando um sangramento que escorria pelos lábios”.
Esta é uma forte concorrente ao título de cena de perseguição mais absurda da história da literatura. É isso mesmo, pode conferir o replay: o herói está dentro de um Lincoln, sente o calor do motor de uma moto lá fora, tira a camisa enquanto acelera para fugir... e explode um dente.
Seguem-se mais alguns exemplos de um estilo felizmente inimitável:
“Para continuar o relato da minha inconsequência, lembro-me perfeitamente quando acelerei a 150, 180, 220 na Avenida Paulista. Eu teria tentado acelerar ainda mais não fosse pelas rodas traseiras do meu Lincoln, que começaram a emitir um som estranho. A carcaça inteira do automóvel começou a tremer de tal maneira que minhas mãos mal conseguiam segurar o volante luxuoso.
(...)Yesalel disse que eu poderia ter perdido o meu corpo no acidente e que deveria seguir o exemplo deles, que mantem o mesmo há séculos, excluindo Ieialel, que sempre se envolvia em confusões e já perdera 2 mil corpos. Bom, acredito que Ieialel deveria saber o que estava fazendo, afinal foi o autor do importante Manual do Imortal.
(...) Sitael, o chefe da segurança da Black Angels, resolveu colocar dois Cavaleiros Templários como meus guarda-costas. Nem preciso dizer que odiei. Eles estão sempre atrás de mim em todos os lugares aonde vou, menos no toalete, pois isso não aceitaria de maneira alguma. Qayin não se intimida e sempre aparece, mas durante esses meses eles não se enfrentaram, já que seria insano tentar enfrentar Qayin. Os corpos que usa não são dele, mas de pessoas inocentes ou não tão inocentes assim(...)”
Nas páginas 120-121, o autor tentou encaixar a narrativa na história recente do Brasil. Infelizmente, não se deu ao necessário trabalho de pesquisá-la.
“DIÁRIO: 14 de junho de 1992
O Brasil passa por uma séria crise financeira, e o impeachment do presidente Fernando Collor de Mello já é praticamente certo. Adultos e jovens saem às ruas para protestar, e num dia desses me juntei a eles. Essa manifestação se deu em plena Avenida Paulista (...) Não sei se os demônios sabiam o que realmente faziam, mas eles faziam parte dos caras-pintadas que agitavam pela saída do presidente (...)”
Na realidade, o movimento pelo impeachment de Collor começou em julho. A primeira manifestação na qual apareceram os jovens caras-pintadas deu-se em 11 de agosto, na Paulista. Mas a descrição das multidões parecem remeter ao grande ato público em São Paulo de 18 de setembro – que, na verdade, foi no Anhangabaú.
Chegamos – pois não há mal que sempre dure – ao fim da história. É 17 de janeiro de 1995, data cujo acontecimento mais notável, conforme registraram os jornais, foi um terremoto em Kobe, Japão. O narrador-protagonista nos garante, porém, que o sismo foi provocado por Caim, que depois de ter passado milênios se distraindo com travessuras, por fim tenta libertar sua mãe Lilith, aprisionada em uma caverna desde o início dos tempos – prodígio ao qual os “anjos caídos” assistem inermes. Mas aí chega a cavalaria.
Minto. É Jesus em pessoa, a segunda da Santíssima Trindade, que desce dos céus, contém Caim e o liberta da servidão à mãe. Jesus salva? Não. O protagonista, o mundo e Caim, talvez. Mas nem Ele consegue salvar o livro.
E o protagonista continua sua boa vida, agora com ainda menos trabalho. Caim agora é “do bem”, Lilith está definitivamente aprisionada e só sobraram alguns demônios pés-de-chinelo espalhados pelo mundo. Inexplicável que o mundo tenha continuado a ir tão mal desde 1995, a ponto de produzir romances como este.