Paulicéia Desvairada

Paulicéia Desvairada Mário de Andrade




Resenhas - Paulicea Desvairada


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anna normanton 24/01/2009

Prefácio Interessantíssimo
Acho muito válido postar o prefácio de Paulicéia Desvairada, já que além do prefácio ser ótimo, é considerado a base do modernismo brasileiro.

Aqui vai:

Prefácio Interessantíssimo

"Dans mon pays de fiel et d'or j'en suis la loi."

Leitor:

Está fundado o Desvairismo.

Este prefácio, apesar de interessante, inútel.

Alguns dados. Nem todos. Sem conclusões. Para quem me aceita são inúteis amos. Os curiosos terão prazer em descobrir minhas conclusões, confrontando obra e dados. Para quem me rejeita trabalho perdido explicar o que, antes de ler, já não aceitou.

Quando sinto a impulsão lírica escrevo sem pensar tudo o que meu inconsciente me grita. Penso depois: não só para corrigir, como para justificar o que escrevi. Daí a razão deste Prefácio Interessantíssimo.

Aliás muito difícil nesta prosa saber onde termina a blague, onde principia a seriedade. Nem eu sei.

E desculpo-me por estar tão atrasado dos movimentos artísticos atuais. sou passadista, confesso. Ninguém pode se libertar duma só vez das teorias-avós que bebeu; e o autor deste livro seria hipócrita si pretendesse representar orientação moderna que ainda não compreende bem.

Livro evidentemente impressionista. Ora, segundo modernos, erro grave o Impressionismo. Os arquitetos fogem do gótico como da arte nova, filiando-se, para além dos tempos históricos, nos volumes elementares: cubo, esfera, etc. Os pintores desdenham Delacroix como Whistler, para apoiarem na calma construtiva de Rafael, de Ingres, do Grecco. Na escultura Rodin é ruim, os imaginários africanos são bons. Os músicos desprezam Debussy, genuflexos diante da polifonia catedralesca de Palestrina e João Sebastião Bach. A poesia... "tende a despojar o homem de todos os seus aspectos contingentes e efêmeros, para apanhar nele a humanidade..."Sou passadista, confesso.

"Este Alcorão nada mais é que uma embrulhada de sonhos confusos e incoerentes. Não é inspiração provinda de Deus, mas criada pelo autor. Maomé não é profeta, é um homem que faz versos. Que se apresente com algum sinal revelador do seu destino, como os antigos profeta." Talvez digam de mim o que disseram do criador de Alá. Diferença cabal entre nós dois: Maomé apresentava-se como profeta; julguei mais conveniente apresentar-me como louco.

Você já leu São João Evangelista? Walt Whitman? Mallarmé? Verhaeren?

Perto de dez anos metrifiquei, rimei. Exemplo?

ARTISTA


O meu desejo é ser pintor - Lionardo,
Cujo ideal em piedades se acrisola;
Fazendo abrir-se a mundo a ampla corola
do sonho ilustre que em meu peito guardo...

Meu anseio é, trazendo ao fundo pardo
da vida, a cor da veneziana escola,
dar tons de rosa e de ouro, por esmola,
a quanto houver de penedia ou cardo.

Quando encontrar o manancial das tintas
e os pincéis exaltados com que pintas,
Veronese! teus quadros e teus frisos,
irei morar onde as Desgraças moram;
e viverei de colorir sorrisos
nos lábios dos que imprecam ou que choram!

Os Srs. Laurindo de Brito, Martins Fontes, Paulo Setúbal, embora não tenham evidentemente a envergadura de Vicente de Carvalho ou de Francisca Júlia, publicam seus versos. E fazem muito bem. Podia, como eles, publicar meus versos metrificados.

Não sou futurista (de Marinetti). Disse e repito-o. Tenho pontos de contato com o futurismo. Oswald de Andrade, chamando-me de futurista, errou. A culpa é minha. Sabia da existência do artigo e deixei que saísse. Tal foi o escândalo, que desejei a morte do mundo. Era vaidoso. Quis sair da obscuridade. Hoje tenho orgulho. Não me pesaria reentrar na obscuridade. Pensei que discutiriam minhas idéias (que nem são minhas) : discutiram minhas intenções. Já agora não me calo. Tanto ridicularizariam meu silêncio como esta grita. Andarei a vida de braços no ar, como o "Indiferente" de Watteau.

"Alguns leitores ao lerem estas frases (poesia citada) não compreenderam logo. Creio mesmo que é impossível compreender inteiramente à primeira leitura pensamentos assim esquematizados sem uma certa prática. Nem é nisso que um poeta pode queixar-se dos seus leitores. No que estes se tornam condenáveis é em não pensar que um autor que assina não escreve asnidades pelo simples prazer de experimentar tinta; e que, sob essa extravagância aparente havia um sentido porventura interessantíssimo, que havia qualquer coisa por compreender." João Epstein.

Há neste mundo um senhor chamado Zdislas Milner. Entretanto escreveu isto: "O fato duma obra se afastar de preceitos e regras aprendidas, não dá a medida do seu valor". Perdoe-me dar algum valor a meu livro. Não há pai que, sendo pai, abandone seu filho corcunda que se afoga, para salvar o lindo herdeiro do vizinho. A ama-de-leite do conto foi uma grandíssima cabotina desnaturada.

Todo escritor acredita na valia do que escreve. Si mostra é por vaidade. Si não mostra é por vaidade também.

Não fujo do ridículo. Tenho companheiros ilustres.

O ridículo é muitas vezes subjetivo. Independe do maior ou menor alvo de quem o sofre. Criamo-lo para vestir com ele quem fere nosso orgulho, ignorância, esterilidade.

Um pouco de teoria? Acredito que o lirismo, nascido no subconsciente, acrisolado num pensamento claro ou confuso, cria frases que são versos inteiros, sem prejuízo de medir tantas sílabas, com acentuação determinada. Entroncamento é sueto para os condenados da prisão alexandrina. Há porém raro exemplo dele neste livro. Uso de cachimbo...

A inspiração é fugaz, violenta. Qualquer impecilho a perturba e mesmo emudece. Arte, que, somada a Lirismo, dá Poesia, não consiste em prejudicar a doida carreira do estado lírico para avisá-lo das pedras e cercas de arame do caminho. Deixe que tropece, caia e se fira. Arte é mondar mais tarde o poema de repetições fastientas, de sentimentalidades românticas, de pormenores inúteis ou inexpressivos.

Que Arte não seja porém limpar versos de exageros coloridos. Exagero: símbolo sempre novo da vida como do sonho. Por ele vida e sonho se irmanaram. E, consciente, não é defeito, mas meio legítimo de expressão.

"O vento senta no ombro das tuas velas!" Shakespeare. Homero já escrevera que a terra mugia debaixo dos pés de homens e cavalos. Mas você deve saber que há milhões de exageros na obra dos mestres.

Taine disse que o ideal dum artista consiste em "apresentar, mais que os próprios objetos, completa e claramente qualquer característica essencial e saliente das relações naturais entre as suas partes, de modo a tornar essa característica mais visível e dominadora". O Sr. Luís Carlos, porém, reconheço que tem o direito de citar o mesmo em defesa das suas "Colunas".

Já raciocinou sobre o chamado belo horrível, é pena. O belo horrível é uma escapatória criada pela dimensão da orelha de certo filósofos para justificar a atração exercida, em todos os tempos, pelo feio sobre os artistas. Não me venham dizer que o artista, reproduzindo o feio, o horrível, faz obra bela. Chamar de belo o que é feio, horrível, só porque está expressado com grandeza, comoção, arte, é desvirtuar ou desconhecer o conceito de beleza. Mas feio = pecado... Atrai. Anita Malfatti falava-me outro dia no encanto sempre novo do feio. Ora Anita Malfati ainda não leu Emílio Bayard: "O fim lógico dum quadro é ser agradável de ver. Todavia comprazem-se os artistas em exprimir o singular encanto da feiúra. O artista sublima tudo".

Belo da arte: arbitrário, convencional, transitório - questão de moda. Belo da natureza: imutável, o objetivo, natural - tem a eternidade que a natureza tiver. Arte não consegue reproduzir natureza, nem este é seu fim. Todos os grandes artistas, ora consciente ( Rafael das Madonas, Rodin do Balzac, Beetjoven da Pastoral Machado de Assis do Brás Cubas), ora inconscientemente (a grande maioria), foram deformadores da natureza. Donde infiro que o belo artístico será tanto mais artístico, tanto mais subjetivo quanto mais se afastar do belo natural. Outros infiram o que quiserem. Pouco me importa.

Nossos sentidos são frágeis. A percepções das coisas exteriores é fraca, prejudicada por mil véus, provenientes das nossas taras físicas e morais: doenças, preconceitos, indisposições, antipatias, ignorâncias, hereditariedade, circunstâncias de tempo, de lugar, etc... Só idealmente podemos conhecer os objetos como os atos na sua inteireza bela ou feia. A arte que, mesmo tirando os seus temas do mundo objetivo, desenvolve-se em comparações afastadas, exageradas, sem exatidão aparente, ou indica os objetos, como um universal, sem delimitação qualificativa nenhuma, tem o poder de nos conduzir a essa idealização livre, musical. Esta idealização livre, subjetiva permite criar todo um ambiente de realidades ideais onde sentimentos, seres e coisas, belezas e defeitos se apresentam na sua plenitude heróica, que ultrapassa a defeituosas percepção dos sentidos. Não sei que futurismo pode existir em quem quase perfilha a concepção estética de Fichte. Fujamos da natureza! Só assim a arte não se ressentirá da ridícula fraqueza da fotografia... colorida.

Não acho mais graça nenhuma nisso da gente submeter comoções a um leito de Procusto para que obtenham, em ritmo convencional, número convencional de sílabas. Já, primeiro livro, usei indiferentemente, sem obrigação de retorno periódico, os diversos metros pares. Agora liberto-me também desse preconceito. Adquiro outros. Razão para que me insultem?

Mas não desenho baloiços dançarinos de redondilhas e decassílabos. Acontece a comoção caber neles. Entram pois às vezes no cabaré rítmico dos meus versos. Nesta questão de metros não sou aliado; sou como a Argentina: enriqueço-me.

Sobre a ordem? Repugna-me, com efeito, o que Musset chamou: "L'art de servir à point un dénouement bien cuit".

Existe a ordem dos colegiais infantes que saem das escolas de mãos dadas, dois a dois. Existe uma ordem nos estudantes das escolas superiores que descem uma escada de quatro em quatro degraus, chocando-se lindamente. Existe uma ordem, inda mais alta, na fúria desencadeada dos elementos.

Quem leciona história no Brasil obedecerá a uma ordem que, certo, não consiste em estudar a Guerra do Paraguai antes do ilustre acaso de Pedro Álvares. Quem canta seu subconsciente seguirá a ordem imprevista das comoções, das associações de imagens, dos contactos exteriores. Acontece que o tema às vezes descaminha.

O impulso lírico clama dentro de nós como turba enfuriada. Seria engraçadíssimo que a esta se dissesse: "Alto lá! Cada qual berre por sua vez; e quem tiver o argumento mais forte, guarde-o para o fim!" A turba é confusão aparente. Quem souber afastar-se idealmente dela, verá o imponente desenvolver-se dessa alma coletiva, falando a retórica exata das reivindicações.

Minhas reinvindicações? Liberdade. Uso dela; não abuso. Sei embridá-la nas minhas verdades filosóficas e religiosas; porque verdades filosóficas, religiosas, não são convencionais como a Arte, são verdades. Tanto Não abuso! Não pretendo obrigar ninguém a seguir-me. Costumo andar sozinho.

Virgílio, Homero, não usaram rima. Virgílio, Homero, têm assonâncias admiráveis.

A língua brasileira é das mais ricas e sonoras. E possui o admirabilíssimo "ão".

Marinetti foi grande quando redescobriu o poder sugestivo, associativo, simbólico, universal, musical da palavra em liberdade. Aliás: velha como Adão. Marinetti errou: fez dela um sistema. É apenas auxiliar poderosíssimo. Uso palavras em liberdade. Sinto que o meu copo é grande demais para mim, e ainda bebo no copo dos outros.

Sei construir teorias engenhosas. Quer ver? A poética está muito mais atrasada que a música. Esta abandonou, talvez mesmo antes do século 8, o regime da melodia quando muito oitavada, para enriquecer-se com os infinitos recursos da harmonia. A poética, com rara exceção até meados do século 19 francês, foi essencialmente melódica. Chamo de verso melódico o mesmo que melodia musical: arabesco horizontal de vozes (sons) consecutivas, contendo pensamento inteligível.

Ora, si em vez de unicamente usar versos melódicos horizontais: "Mnezarete, a divina, a pálida Finéias comparece ante a austera e rígida assembléia do Areópago supremo...", fizermos que se sigam palavras sem ligação imediata entre si: estas palavras, pelo fato mesmo de se não seguirem intelectual, gramaticalmente, se sobrepõem umas às outras, para a nossa sensação, formando, não mais melodias, mas harmonias. Explico milhor: Harmonia: combinação dos sons simultâneos. Exemplo: "Arroubos... Lutas... Setas... Cantigas,,, Povoar!..." Estas palavras não se ligam. Não formam enumeração. Cada uma é frase, período elíptico, reduzido ao mínimo telegráfico. Si pronuncio "Arroubos", como não faz parte de frase (melodia), a palavra chama a atenção para seu insulamento e ficava vibrando, à espera duma frase que lhe faça adquirir significado e QUE NÃO VEM. "Lutas" não dá conclusão alguma a "Arroubos"; e , nas mesmas condições, não fazendo esquecer a primeira palavra, fica vibrando com ela. As outras vozes fazem o mesmo. Assim: em vez de melodia (frase gramatical) temos acorde arpejado, harmonia, - o verso harmônico. Mas si em vez de usar só palavras soltas, uso frases soltas: mesma sensação de superposição, não já de palavras (notas) mas de frases (melodias). Portanto : polifonia poética. Assim, em "Paulicéia Desvairada" usam-se o verso melódico: "São Paulo é um palco de bailados russos"; o verso harmônico: "A cainçalha ... A Bolsa... As jogatinas..."; e a polifonia poética (um e à vezes dois e mesmo mais versos consecutivos): "A engrenagem trepida... A bruma neva..." Que tal? Não se esqueça porém que outro virá destruir tudo isto que construí.

Para juntar à teoria:

1.º

Os gênios poéticos do passado conseguiram dar maior interesse ao verso melódico, não só criando-o mais belo, como fazendo-o mais variado, mais comotivo, mais imprevisto. Alguns mesmo conseguiram formar harmonias, por vezes ricas. Harmonias porém inconscientes, esporádicas. Provo inconsciência: Victor Hugo, muita vez harmônico, exclamou depois de ouvir o quarteto do Rigoleto: "Façam que possa combinar simultaneamente vária frases e verão de que sou capaz". Encontro anedota em Galli, Estética Musical. Se non é vero...

2.º

Há certas figuras de retórica em que podemos ver embrião da harmonia oral, como na lição das sinfonias de Pitágoras encontramos germe da harmonia musical. Antítese - genuína dissonância. E si tão apreciada é justo porque poetas como músicos, sempre sentiram o grande encanto da dissonância, de que fala G. Migot.

3.º

Comentário à frase de Hugo. Harmonia oral não se realiza, como a musical, nos sentidos, porque palavras não se fundem como sons, antes baralham-se, tornam-se incompreensíveis. A realização da harmonia poética efetua-se na inteligência. A compreensão das artes do tempo nunca é imediata, mas mediata. Na arte do tempo coordenamos atos de memória consecutivos, que assimilamos num todo final. Este todo, resultante de estados de consciência sucessivos, dá a compreensão final, completa da música, poesia, dança terminada. Victor Hugo errou querendo realizar objetivamente o que se realiza subjetivamente, dentro de nós.

4.º

Os psicólogos não admitirão a teoria... É responder-lhes com o "Só-que-ama"de Bilac. Ou com os versos de Heine de que Bilac tirou o "Só-quem-ama". Entretanto: si você já teve por acaso na vida um acontecimento forte, imprevisto (já teve, naturalmente), recorde-se do tumulto desordenado das muitas idéias que nesse momento lhe tumultuaram no cérebro. Essas idéias, reduzidas ao mínimo telegráfico da palavras, não se continuavam, porque não faziam parte de frase alguma, não tinham resposta, solução, continuidade. Vibravam, ressoavam, amontoavam-se, sobrepunham-se. Sem ligação, sem concordância aparente - embora nascidas do mesmo acontecimento - formavam, pela sucessão rapidíssima, verdadeira simultaneidade, verdadeiras harmonias acompanhando a melodia energética e larga do acontecimento.

Bilac, Tarde, é muitas vezes tentativa de harmonia poética. Daí, em parte ao menos, o estilo novo do livro. Descobriu, para a língua brasileira, a harmonia poética, antes dele empregada raramente. (Gonçalves Dias, genialmente, na cena da luta, Y-Juca-Pirama). O defeito de Bilac foi não metodizar o invento; tirar dele todas as conseqüências. Explica-se historicamente seu defeito: Tarde é um apogeu. As decadências não vêm depois dos apogeus. O apogeu já é decadência, porque sendo estagnação não pode conter em si um progresso, uma evolução ascensional. Bilac representa uma fase destrutiva da poesia; porque toda perfeição em arte significa destruição. Imagino o seu susto, leitor, lendo isto. Não tenho tempo para explicar: estude, si quiser. O nosso primitivismo representa uma nova fase construtiva. A nós compete esquematizar, metodizar as lições do passado. Volto ao poeta. Ele fez como os criadores do Organum medieval: aceitou harmonias de quartas e quintas desprezando terceiras, sextas, todos os demais intervalos. O número das suas harmonias é muito restrito. Assim, "... o ar e o chão, a fauna e a flora, a erva e o pássaro, a pedra e o tronco, os ninhos e a hera, a água e o réptil, a folha e o inseto, a flor e a fera" dá a impressão duma longa, monótona série de quintas medievais, fastidiosa, excessiva, inútil, incapaz de sugestionar o ouvinte e dar-lhe a sensação do crepúsculo na mata.

Lirismo: estado afetivo sublime - vizinho da sublime loucura. Preocupação de métrica e de rima prejudica a naturalidade livre do lirismo objetivado. Por isso poetas sinceros confessam nunca ter escrito seus milhores versos. Rostand por exemplo; e, entre nós, mais ou menos, o Sr. Amadeu Amaral. Tenho a felicidade de escrever meus milhores versos. Melhor do que isso não posso fazer.

Ribot disse algures que inspiração é telegrama cifrado transmitido pela atividade inconsciente à atividade consciente que o traduz. Essa atividade consciente pode ser repartida entre poeta e leitor. Assim aquele não escorcha e esmiúça friamente o momento lírico; e bondosamente concede ao leitor a glória de colaborar nos poemas.

"A linguagem admite a forma que o mármore não admite." Renan.

"Entre o artista plástico e o músico está o poeta, que se avizinha do artista plástico com a sua produção consciente, enquanto atinge as possibilidades do músico no fundo obscuro do inconsciente." De Wagner.

Você está reparando de que maneira costumo andar sozinho...

Dom Lirismo, ao desembarcar do Eldorado do Inconsciente no cais da terra do Consciente, é inspecionado pela visita médica, a Inteligência, que o alimpa dos macaquinhos e de toda e qualquer doença que possa espalhar confusão, obscuridade na terrinha progressista. Dom Lirismo sofre mais uma visita alfandegária, descoberta por Freud, que denominou Censura. Sou contrabandista! E contrário à lei da vacina obrigatória.

Parece que sou todo instinto... Não é verdade. Há no meu livro, e não me desagrada, tendência pronunciadamente intelectualista. Que quer você? Consigo passar minhas sedas sem pagar direitos. Mas é psicologicamente impossível livrar-me da injeções e dos tônicos.

A gramática apareceu depois de organizadas as línguas. Acontece que meu inconsciente não sabe da existência de gramáticas, nem de línguas organizadas. E como Dom Lirismo é contrabandista...

Você perceberá com facilidade que si na minha poesia a gramática às vezes é desprezada, graves insultos não sofre neste prefácio interessantíssimo. Prefácio: rojão do meu eu superior. Versos: paisagem do meu eu profundo.

Pronomes? Escrevo brasileiro. Si uso ortografia portuguesa é porque, não alterando o resultado, dá-me uma ortografia.

Escrever arte moderna não significa jamais para mim representar a vida atual no que tem de exterior: automóveis, cinema, asfalto. Si estas palavras freqüentam-me o livro não é porque pense com elas escrever moderno, mas porque sendo meu livro moderno, elas têm nele sua razão de ser.

Sei mais que pode ser moderno artista que se inspire na Grécia de Orfeu ou na Lusitânia de Nun' Álvares. Reconheço mais a existência de temas eternos, passíveis de afeiçoar pela modernidade: universo, pátria, amor e a presença-dos-ausentes, ex-gozo-amargo-de-infelizes.

Não quis também tentar primitivismo vesgo e insincero. Somos na realidade os primitivos duma era nova. Esteticamente: fui buscar entre as hipóteses feitas por psicólogos, naturalistas e críticos sobre os primitivos das eras passadas, expressão mais humana e livre da arte.

O passado é lição para se meditar, não para reproduzir. "E tu che sè costí, anima viva, Pártiti da cotesti son morti."

Por muitos anos procurei-me a mim mesmo. Achei. Agora não me digam que ando à procura da originalidade, porque já descobri onde ela estava, pertence-me, é minha.

Quando uma das poesias deste livro foi publicada, muita gente me disse: "Não entendi". Pessoas houve porém que confessaram: "Entendi, mas não senti". Os meus amigos... percebi mais duma vez que sentiam, mas não entendiam. Evidentemente meu livro é bom.

Escritor de nome disse dos meus amigos e de mim que ou éramos gênios ou bestas. Acho que tem razão. Sentimos, tanto eu como meus amigos, o anseio do farol. Si fôssemos tão carneiros a ponto de termos escola coletiva, esta seria por certo o "Farolismo". Nosso desejo: indicaremos o caminho a seguir, bestas: náufragos por evitar.

Canto da minha maneira. Que me importa si me não entendem? Não tenho forças bastantes para me universalizar? Paciência. Como o vário alaúde que construí, me parto por essa selva selvagem da cidade. Como o homem primitivo cantarei a princípio só. Mas canto é agente simpático: faz renascer na alma dum outro predisposto ou apenas sinceramente curioso e livre, o mesmo estado lírico provocado em nós por alegrias, sofrimentos, ideais. Sempre hei de achar também algum, alguma que se embalarão à cadência libertária dos meus versos. Nesse momento: novo Anfião moreno e aixa-d'óculos, farei que as próprias pedras se reunam em muralhas à magia do meu cantar. E dentro dessas esconderemos nossa tribo.

Minha mão escreveu a respeito deste livro que "não tinha e não tem nenhuma intenção de o publicar". Jornal do Comércio, 6 de junho. Leia frase de Gourmont sobre contradição: 1.º volume das "Promenades Littéraires". Rui Barbosa tem sobre ela página lindíssima, não me recordo onde. Há umas palavras também em João Cocteau, "La Noce Massacrée".

Mas todo esse prefácio, com todo o disparate das teorias que contém, não vale coisíssima nenhuma. Quando escrevi "Paulicéia desvairada" não pensei em nada disto. Garanto porém que chorei, que cantei, que ri, que berrei... Eu vivo!

Aliás versos não se escrevem para leitura de olhos mudos. Versos cantam-se, urram-se, choram-se. Que não souber cantar não leia Paisagem n.º 1. Quem não souber urrar não leia Ode ao Burguês. Quem não souber rezar, não leia Religião. Desprezar: A Escalada. Sofrer: Colloque Sentimental. Perdoar: a cantiga do berço, um dos solos de Minha Loucura, das Enfibraturas do Ipiranga. Não continuo. Repugna-me dar a chave de meu livro. Quem for como eu tem essa chave.

E está acabada a escola poética "Desvairismo".

Próximo livro fundarei outra.

E não quero discípulos. Em arte: escola = imbecilidade de muitos para vaidade dum só.

Poderia ter citado Gorch Fock. Evitava o Prefácio Interessantíssimo. "Toda canção de liberdade vem do cárcere."
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joedson 15/12/2010

PAULICÉIA DESVAIRADA

do prefácio ao difícil
coral da multidão
interessante míssil
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Cris 17/05/2011

São Paulo: movimento e modernismo
Cheguei a "Paulicéia Desvairada" através do grupo de estudos de poesia modernista a qual pertenço na faculdade. Ia ler por obrigação, mas esperava que a obrigação se transformasse em prazer.
E foi o que aconteceu.
O jeito desvairado de Mário de Andrade de fazer poesia e retratar São Paulo -seu povo, suas novidades e seus problemas- prendeu meu interesse. Li com gosto no pouco tempo livre que tinha para a leitura. E deliciei-me, a ponto de chegar no final e querer mais.
A poesia de Paulicéia Desvairada retrata o que era São Paulo na época de Mário de Andrade, e aquele sentimento de... perplexidade, talvez, perante o movimento, a inovação se traduz na alma de quem lê. -Pelo menos foi o que aconteceu comigo.
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Carmem.Toledo 20/04/2016

"Está fundado o Desvairismo..."
Este é um dos textos inaugurais do Modernismo no Brasil. Nele, Mario de Andrade faz uma homenagem/crítica à cidade de São Paulo, por meio de versos carregados de ironia, metáforas e comparações, às vezes, aparentando um "nonsense" proposital, que logo é resolvido por quem conhece a "Pauliceia Desvairada".
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Colégio Evolução 22/07/2017

Pauliceia Desvairada é um livro de poemas de Mário de Andrade de 1922, no qual ele explora conquistas do Modernismo brasileiro em poesia é pública sua famosa Ode ao Burguês, o mais célebre poema dos primórdios do modernismo.
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Wagner 19/01/2019

OS CORTEJOS

(...) Horríveis as cidades !
Vaidades e mais vaidades...
Nada de asas! Nada de poesia! Nada de alegria!
Oh! os tumultuários das ausências !
Pauliceia - a grande boca de mil dentes;
e os jôrros dentre a lingua trissulca
de pús e de mais pús de distinção...

in: ANDRADE, Mário de. Paulicéia Desvairada, São Paulo: Casa Mayença, 1922. pg 47 ( fac-simile)
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henrique.rangel 03/03/2019

Como paulistano e amante de história sempre quis ler esse livro. Confesso que apesar de conhecer bem o contexto histórico tive um pouco de dificuldade de ler, mas muito disso acho ter sido por ter usado a versão digital. Achei um livro que definitivamente quebra o padrão de poesia/poema tradicional, ainda mais para a época que foi escrito.
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Tailane Santos 30/08/2019

Estou apaixonada
Só o prefácio interessantíssimo tem todo meu coração, mais aí então o Mario é mais incrível e tem todo esse jogo de fazer poesias jogando verdades e ironias na nossa cara.
Estou apaixonada pela mente desse homem e querendo ler tudo que ele escreveu.
O final com as poesias escritas como uma apresentação de uma orquestra foi tiro de poesia em meu peito.
Amei amei amei
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22/05/2020

Ode ao modernismo
Acho que esse livro toca qualquer paulistano, qualquer pessoa que já tenha vivido São Paulo: Paulicéia tem o ritmo da cidade.
Apesar de seus quase 100 anos continua atual, é atemporal como todos os grandes clássicos. Vale ler e reler!
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Alexandre.Roux 20/08/2020

Versos Arlequinais
Cativante desde já pelo prefácio, como nome diz: interessantíssimo. Não me hesitei em destacar com um marcador amarelado os versos que mais estenderam meus olhos e mente, aqueles sobre o contexto de época que se aplicam ao momento contemporâneo e nos dão a sensação de estar lendo um raciocínio atual e embaralhado, mesmo que ainda profundo e passado.

Dito isto, destaco: O Rebanho, Paisagem n°3 e a Minha Loucura, além de Ode ao Burguês.

"Aliás versos não se escrevem para leitura de olhos mudos. Versos cantam-se, urram-se, choram-se..." E reafirmo, Pauliceia Desvairada são um conjunto de páginas a serem lidas e reabsorvidas em alto e bom tom, a se sentir cada verso escrito pelo seu autor.
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Maria3427 04/11/2020

Viva o desvairismo!
"Escrever arte moderna não significa jamais para mim representar a vida atual no que tem de exterior: automóveis, cinema, asfalto. Se estas palavras frequentam-me o livro não é porque pense com elas escrever moderno, mas porque sendo meu livro moderno, elas têm nele razão de ser".

Este trecho se encontra no Prefácio interessantíssimo, incluido anos depois pelo autor em que expõe e esclarece alguns pontos importantes acerca de sua obra, que desde sua publicação na semana de arte moderna foi alcunhada como precursora do modernismo no Brasil.

O que fica claro durante a leitura dos poemas é o cenário urbano caótico, paradoxal, apresentado por meio de uma escrita influenciada pelo fluxo de consciência do surrealismo e a deformação abstrata da realidade urbana, mostrada em flashes e passagens desconectadas, que no entanto formam um todo que é a imagem da Pauliceia desvairada.

Para aproveitar a leitura desse livro eu indico que a pessoa pesquise sobre modernismo e um pouco sobre Mário de Andrade, pois muitas pessoas têm dificuldade de interpretar seus poemas, que já não são mesmo de fácil compreensão, então quanto mais informação prévia, melhor.
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MF (Blog Terminei de Ler) 08/11/2020

Mais experimento literário do que uma experiência literária
”Pauliceia desvairada”, obra quase centenária, livro de poesias de Mário de Andrade, marco pioneiro do modernismo no Brasil.

É um livro influente, importante… mas a leitura não me capturou. As vanguardas europeias que influenciaram a geração de artistas da década de 1920, trazendo uma interessante liberdade estilística, tinham em seu fundamento uma ruptura completa com os estilos tradicionais. No caso da poesia, isso significava o uso do verso livre, anárquico, em oposição aos versos determinados por suas sílabas fonéticas.

Essa liberdade permitiu, nas décadas seguintes, o surgimento de vários clássicos da poesia. Contudo, sendo bem sincero, esse grito de liberdade, essa revolução dos primeiros modernistas brasileiros, não me soa de todo sincera. Não me convence.

Quando Mário tenta ridicularizar a burguesia, o conservadorismo e o intelectualismo atrelado aos estilos clássicos, nessa busca por valores nacionais e libertários, a crítica até soa pertinente, mas quando me lembro que Mário pertencia a essa mesma classe social burguesa, viajando à Europa e consumindo a alta cultura e literatura, não me parece convincente. É como um rico que se revolta contra a opressão capitalista, mas não abre mão de seus privilégios. Eu sinto a poesia de “Pauliceia desvairada” ainda muito refém das vanguardas europeias.

Não quero ser injusto. Afinal, esse dadaísmo, esse futurismo, esse cubismo, nos quais nossos intelectuais mergulharam, esse primeiro salto, influenciaram a busca, a formação de uma literatura brasileira, com traços próprios. Talvez, um Ariano Suassuna, ou um Jorge Amado, ou um Carlos Drummond de Andrade, não existiriam sem esse primeiro passo. Enfim…

A verdade é que “Pauliceia desvairada”, para mim, soa mais como um experimento literário, uma tentativa de nacionalizar as vanguardas… e não como uma boa experiência literária em si. Mário de Andrade diz, em certo momento, que alguns não entenderam, que outros apenas sentiram, sem entender… e que isso tornava seu livro bom. Não para mim. A cidade de São Paulo, a protagonista dos versos do livro, é muito mais fascinante do que as imagens trazidas, principalmente nos poemas intitulados “Paisagens”.

O experimentalismo, em vários momentos, demonstra uma criatividade estética, mas isso desfavorece a musicalidade poética e, de certa forma, torna o resultado final desagradável, cansativo, demasiado intimista. Entendo que nem sempre de rima se faz a poesia, mas fluidez literária favorece, ao meu ver, o prazer da leitura.

É compreensível a sensação de revolução que o livro trouxe para nossa literatura, em momentos como na ausência de alguma pontuação, regra de composição e/ou no uso estranho de alguma palavra como substantivo, por exemplo. Entretanto, superado esse impacto, o que sobra é o desconforto de uma leitura arrastada. Talvez, seja o fato de que, nos quase cem anos desde sua publicação, uma gama de obras foi influenciada por “Pauliceia desvairada” e, justamente por isso, aquilo que deveria soar como original acabe, indevidamente e compreensivelmente, digerido como redundante para um leitor de poesia contemporâneo.

“Pauliceia desvairada” é um livro com momentos de versos inspirados e capaz de, em momentos específicos, criar imagens poéticas interessantes. Há uma interessante crítica ao elitismo e conservadorismo intelectual vigente no início daqueles anos de 1920, ainda que eu não veja tanta isenção e autenticidade. Há, por fim, uma busca quase ininterrupta pelo experimentalismo literário, trazendo novidades que marcariam todas as obras poéticas posteriores de nossa literatura (algo a ser elogiado), mas isso acaba prejudicando a experiência da leitura em si, seja pelo intimismo imposto pelo tempo e/ou pelo autor, seja pelo próprio experimentalismo de vanguarda.
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Gabi 10/12/2020

SP
Cenas pra quem ama - ou gostaria de conhecer - São Paulo nos seus altos e baixos, para o bem ou para o mal, com a sua realidade escancarada
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Gabriela Paulino 17/05/2021

Gostei muitíssimo do prefácio, marquei vários trechos, mas o livro em si não me prendeu muito por não ser o meu estilo de poesia favorito.
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Vivi 29/06/2021

O que dizer de Mário de Andrade? Poxa, um autor de tantas facetas! Quando disse ?Eu sou trezentos? não mentia!

Li porque estou estudando sua obra em contexto de Semana de Arte Moderna, tinha a curiosidade desde sempre. Gostei!
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