spoiler visualizarFrancisco 14/03/2024
Tolstoi incrivelmente apaixonado
Vejo na escrita de Tolstoi a maior capacidade possível para escrever amorosamente. Nos momentos em que trata sobre o assunto, seja na relação de Kitty e Lióvin, seja entre Anna e Vrônski, tem total maestria. É curioso imaginar se era assim por fora da escrita. No posfácio é dito que fugiu de casa aos 82 anos, então imagino que era. Não me interessei em partes que descrevia coisas tais como a corrida de cavalos e a caça, mas as declarações amorosas e as filosofias na última parte me surpreenderam. [...] “Todos nós, como seres racionais, não podemos viver de outro modo que não seja para a barriga. E, de repente, o mesmo Fiódor diz que é ruim viver para a barriga, e que é preciso viver para a verdade, para Deus, e basta uma alusão para eu entendê-lo! Eu e milhões de pessoas, que viveram há séculos e que vivem hoje, mujiques, pobres de espírito e pensadores, que refletiram e escreveram a esse respeito, disseram a mesma coisa em sua língua obscura, estamos todos de acordo apenas quanto a isso: para que é preciso viver, e o que é bom. Eu e todas as pessoas possuímos um único conhecimento firme, indubitável e claro, e esse conhecimento não pode ser explicado pela razão, está fora dela, não tem causa e não pode ter quaisquer efeitos.” [...].
A história destes dois protagonistas, que parecem ser os únicos personagens que não se conhecem na maior parte do enredo, conta muitas coisas. No Mito de Sísifo, Camus aborda dois tipos de suicídio. Mesmo sendo anterior a Camus, Tolstoi antecipa estes dois tipos.
Anna efetiva o suicídio material, após cometer um crime que não poderia ser mais brando na sociedade atual, mas que na época não poderia ser mais grave. E é tão marginalizada por seu crime, tão violentada pela sociedade que há pouco a abraçava, que vai a loucura, duvida do sagrado e óbvio amor de Vrônski, não consegue amar a própria filha e acaba debaixo de um vagão por um simples bilhete, tamanha era a gravidade com que via as coisas neste momento final. Seu marido a mantém numa prisão matrimonial digna de Kafka e trata-se de um dos personagens mais insuportáveis.
Já Lióvin passa toda a vida prometendo a si mesmo que a família será o fim das contradições em seus pensamentos. Mesmo conseguindo casar-se com a mulher que tanto almejou e realizando o sonho de ter seu filho, sente-se por fim enganado por si mesmo, sequer considera que ama o filho inicialmente. E por esta mentira que contara a si mesmo passa a temer também o suicídio. Ele é como um ateu que reza e não sabe o porquê. Até que um dia, numa conversa com um mujique, conclui que existe algo metafísico que é impossível de atingir pela razão. Assim comete o suicídio intelectual. Diante do medo do inexplicável, desenvolve sua própria crença para protegê-lo da falta de significado da vida.
“Se não aceito as respostas que a cristandade dá às questões da vida, que respostas aceito?”
“Sem o conhecimento do que sou e por que estou aqui é impossível viver. Não posso saber disso e, consequentemente, é impossível viver.”
“No tempo infinito, na matéria infinita, no espaço infinito, surge um organismo-bolha, essa bolha se mantém por um tempo e estoura, e essa bolha sou eu.”
Ele volta a repetir diversos questionamentos desta natureza, em torno do porquê para que o ciclo repita-se a cada geração ou simplesmente em torno do porquê fazemos o que fazemos. Tolstoi expõe conclusões mais otimistas diante destas perguntas, mas prefiro a visão tardia de Camus por enquanto, quem sabe mais velho não mudo. Acredito que possa ser dito gênio um escritor que permite-nos, por sua obra, fazer uma investigação completamente contrária ao que ele próprio pensa. Aqui está a melhor literatura.