Livia1107 22/01/2024
A maldade, belamente escrita
Uma doce e pobre jovem, muito linda e muito branca, cuida sozinha da mãe doente em uma casa isolada no interior do Brasil e, no espaço de alguns dias, se torna o objeto da paixão arrebatadora de dois homens ricos, também brancos, sendo essa sua perdição. Publicado em 1859, auge do romantismo, o enredo tem todos os elementos para ser um sucesso entre as(os) leitoras(es) da época e, quem sabe, fazer chegar até elas(es) - escondidos em meio aos amores de Úrsula, Tancredo e Fernando - os relatos dos sofrimentos das pessoas negras escravizadas no Brasil.
Ao ler Úrsula, eu imaginei que essa foi a estratégia de Maria Firmina dos Reis - maranhense filha e neta de escravas alforriadas, professora concursada do estado, e considerada hoje a primeira escritora abolicionista do Brasil - para que seu verdadeiro objetivo se concretizasse: envolver a(o) leitora(or) em dramas românticos e paisagens idílicas para tocá-las, quase sem querer, com a ponta do chicote.
Discretas, as personagens secundárias Túlio e Mãe Suzana contam suas histórias ali no meio das desventuras de Úrsula, apresentando em momentos oportunos a nada lírica violência sofrida pelos escravizados, ambos contando em primeira pessoa sobre dor, injustiça, degradação, tristeza e morte. O doloroso relato de Mãe Suzana remonta ao seu sequestro, ainda na África, onde foi separada de sua família e embarcou em um tumbeiro, outro nome para as embarcações que, muitos anos depois, Castro Alves - e não Maria Firmina - eternizaria em seu poema Navio Negreiro.
Fui arrebatada pelo vocabulário, pela construção das imagens, pela carga dramática do enredo e pela voltagem sentimental das personagens. Maria Firmina faz a língua portuguesa florescer em um cenário que é ao mesmo tempo sonho e pesadelo, e em que a maldade, infelizmente, pode massacrar a bondade: é o que acontece em todas as tramas que a autora tece nesse romance que deveria estar entre os que são considerados formadores da personalidade cultural brasileira, mas que nunca teve o reconhecimento merecido.
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