Henrique Fendrich 06/01/2022
Uma preciosidade esse livro, seja pelas improváveis condições para que fosse publicado por uma mulher negra em plena época da escravidão, em 1859, seja pela riqueza de conteúdo e de linguagem que esse mesmo contexto histórico é capaz de oferecer ao leitor contemporâneo.
Em termos de estilo, tem-se um texto romântico e carregado de sentimentalismo, como eram usuais à época, mas mesmo nesse ambiente a autora oferece algo novo, como, em geral, todos os estudiosos destacaram: o fato de dar voz a escravos para que refletissem sobre a sua própria condição, inclusive em uma cena da qual branco nenhum participa.
Trata-se, contudo, de reflexões incidentais, já que a trama principal envolve um par romântico de brancos, vindos de famílias escravagistas, mas que, mesmo assim, destacavam-se pela pureza e nobreza de espírito, o que se refletia inclusive no tratamento que dispensavam aos escravos. Nesse sentido, o "mocinho" Tancredo emite juízos abertamente antiescravagistas.
Além dessa escravidão de fato, o livro tem como tema principal outro tipo, que é a escravidão dos seus desejos e dos seus apetites. Fernando, crudelíssimo proprietário de escravos, era ele próprio escravo dos seus impulsos, deixava-se facilmente dominar por eles e, agindo dessa maneira, matava, perseguia, torturava, fazia o possível para satisfazer a sua cobiça.
Também o pai de Tancredo e a ex-amada Adelaide cederam a caprichos momentâneos e com isso perderam o controle das suas vidas, atraindo sobre si desgraças e sofrimentos. Por outro lado, o escravo Túlio, se bem que tenha levado uma vida de muito sofrimento físico, tinha a consciência de que possuía a liberdade da mente e, com sua atitude, provava ser muito mais digno e valoroso do que aqueles que tinham o poder de subjugar outros seres humanos.
Não que, no fim das contas, isso tenha evitado o terrível desfecho, que, inclusive, parece ter sido estendido a todo mundo (pessoalmente, eu gostei que o desfecho não fosse feliz como talvez seria de esperar de um romance que fosse puramente sentimental). Há, de todo modo, um claro apelo a virtudes e boas condutas que, nitidamente, não contemplam a escravidão.
O livro se mostra atual mesmo em nossa época, pois todos os dias lemos sobre homens que, se bem que possam dispor livremente de seus corpos, estão escravizados à ideia de que não podem ser rejeitados por mulher alguma, sob pena de promoverem verdadeira carnificina. O comportamento de Fernando em relação a Úrsula, assim como o do pai de Tancredo em relação a mãe dele, ainda são comuns e estão por trás de tantos casos de feminicídio.
Em relação à linguagem, especificamente, há aqueles exageros líricos próprios dos livros românticos, mas me chamou bastante a atenção o uso da palavra "transporte" com o sentido de "arroubo", que Maria Firmina usa com muita, muita frequência mesmo: "num transporte de íntima e generosa gratidão", "os virtuosos transportes do seu coração", "correu para ela com indefinível transporte", "no primeiro transporte de alegria", "abraçou-me com transporte", e por aí vai.
Também frequente é o uso de "embalde", forma menos comum para "debalde" (que, contudo, também já está em franco desuso há muito tempo). Um livro escrito há mais de 160 anos certamente terá notáveis diferenças de linguagem e felizmente essa edição da Penguin parece ter mantido grande parte delas, o que torna a leitura igualmente interessante.
Sem dúvida, um livro que deve ser conhecido por todo brasileiro que gosta de ler.