Esquila

Esquila Jonas Espirito Santo




Resenhas - Esquila


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Esquila.Livro 24/12/2020

ENTRE DOIS MUNDOS, ESQUILA
ESQUILA resenhado pela Profa. Dra. Luciana Murari.
Entre dois mundos, Esquila.
A modernidade, nos ensinou Marshall Berman, é acima de tudo uma grande experiência coletiva global, vivenciada com particular intensidade por aqueles que, imersos em um contexto tradicional, veem-se divididos entre o passado e o futuro. Não é, entretanto, um processo de impacto uniforme, pois a liberdade de manifestação da subjetividade e a consciência de si, condições existenciais geradas no interior do próprio mundo moderno, fazem com que as possibilidades de intercâmbio com o universo tradicional sejam as mais heterogêneas.
De fato, vínculos comunitários, práticas consagradas, espólios familiares, conhecimentos introjetados e reminiscências religiosas, por exemplo, não foram automaticamente excluídos da modernidade, ela própria capaz de formar suas tradições características, enquanto as respostas individuais aos estímulos afetivos do passado oscilam de acordo com diferentes sensibilidades e inclinações.
Podemos assim compreender o universo de dilemas e angústias de Anselmo, Jerônimo e Augusto, os três personagens masculinos de Esquila, romance em que Jonas Espírito Santo exercita sua prosa na dinâmica dessa problemática negociação, dentro do contexto moderno, com o universo tradicional, vivido como continuidade, herança ou estorvo.
Anselmo sente que seu mundo não sobreviverá a si próprio, e que suas conexões com o passado da sua querência, da sua família, do seu estado seriam as últimas ainda possíveis naquele lugar destinado ao esquecimento. Com ele parecia perder-se a memória daquele rico acervo de experiências e saberes, porque seu irmão Jerônimo já se apartara dela, décadas antes. Sentia sua morte chegar, e com ela, juntamente, a morte do clã que há tempos ocupara aquela terra e que um dia a vira próspera. O sentimento coletivo de que aquele mundo era o pretérito nada tinha de novo, no entanto, pois se prolongava ao longo da história da região desde pelo menos o início do século XX, sua vida apenas um capítulo no extenso livro das permanências e abandonos da terra de origem na história contemporânea.
Jerônimo, por sua vez, mantinha ligações sentimentais com a família e o passado histórico, mas já não pertencia àquele lugar há muito tempo. Pretender voltar era um desejo inverossímil, destes que nós pronunciamos para nós mesmos criando um futuro virtual que acalme nossas consciências e nos permita recuperar o nosso sentido de continuidade ou de vinculação em face de algo que queremos lamentar ter abandonado, mas de fato não lamentamos.
Ele se pergunta: E ao ser escolhido para comandar a estância, quando o velho não mais pudesse, o que fizera em troca? Deixara o pai morrer amargurado sem sequer lhe pedir desculpas. Levaria para o túmulo um fardo de arrependimentos. Nada mais podia ser feito. Restava lembrar-se
saudosamente da juventude. “Mas o que era o saudosismo, afinal? O que havia de errado em sonhar com o passado”? Perguntava-se: “O saudosismo é a saudade de quem não acredita mais no futuro”. Ou, pelo menos, não no futuro daquela realidade fantasmagórica em que ainda se movia.
Jerônimo era, na ordem familiar, o ponto da descontinuidade, a quebra definitiva. E mesmo por isso, ele é aquele que mais teoriza, o que mais romantiza, o que mais dividido se declara, embora seu mergulho na modernidade nunca seja de fato questionado: Era uma região estagnada em algum lugar do passado. Uma região que se recusava a aceitar a realidade. Ou seria a Campanha a própria realidade? (...) A ligação com a terra e os animais; a simplicidade carregada de sentido; a obrigação essencial. (...) Talvez Rodrigo tivesse razão e ele fosse mesmo um romântico incorrigível, escreve Jonas.
Sim, certamente, também porque outra grande perda marcava sua vida, que era a perda do amor, do amor do pai, do amor de Lívia, a perda de algo que realmente teve um dia, que ele sabia irrecuperável e acessível apenas pela memória e pela consciência de si. É muito difícil, no entanto, imaginá-lo em um retorno definitivo, vocacionado que era para admirar o horizonte de conquistas pessoais e de sucessos possíveis da capital. A reparação final, solução apaziguadora encontrada pelo romancista entre os inúmeros possíveis da realidade ficcional, aponta para a expiação da culpa e uma reconciliação libertadora.
Esse não era o caso de Augusto, que se vê na obrigação de sentir saudade do que não conhecia, em nome de um tal sentimento de pertença que lhe faltara e que finalmente encontrara, citando Jonas. Augusto era a evidência da ruptura, tão estrangeiro na estância como no contexto daquela família interiorana de primos mais velhos em que todos pareciam tão mais interessantes do que ele. Não percebia que os outros eram apenas mais velhos, e seu sentimento de inadequação o convidava a uma nostalgia de empréstimo que pretendia suprir suas incertezas de adolescente deslocado e desnorteado.
Augusto é o maior estrangeiro naquele ambiente, e não pertence a ele, não se comunica com ele, apesar de querer, e se sentir obrigado. Naquelas férias deixaria para trás a irresponsável passividade adolescente. Tinha que tomar posse do seu quinhão no mundo. A partir daquele ano amaria para sempre aquela terra que chamaria de pátria. E a prova disso é sua insistência em não aparentar nojo, fraqueza, desconforto, imaturidade ou estranhamento, enquanto isso era tudo que ele realmente sentia naquele lugar. Embora se faça de guardião e herdeiro da culpa paterna, ele nunca se conecta com aquela realidade, embora tenha tentado, renunciando a si mesmo. Sua expressão é forçada e grandiloquente. Ele quer acreditar, mas querer não é acreditar, e nem os outros parecem esperar isso dele.
Todos querem pertencer, inevitável consequência da solidão constituinte de nossa condição de homens modernos... triste condição, da qual só somos sabedores porque nascemos sob o signo dessa experiência que nos dá asas, mas nos destitui de raízes.
O quanto de fato podemos abdicar de nossa liberdade moderna, se é ela que nos carrega ao encontro do nosso próprio eu? – podemos perguntar. As utopias retrógradas nos emocionam, sem dúvida, por vezes mesmo sequestram os sentimentos daqueles que não acreditam nelas: querência, pago, rincão são suas formas na língua literária gauchesca. Mas para muito além do universo da Campanha, esse é um movimento mundial ainda em curso, fragmentado nos últimos séculos em diversos contextos espaço-temporais. A Campanha morre há muito tempo, e enquanto isso as novidades modernas não param de nascer e de morrer.
A maior beleza de Esquila está em recriar a experiência e pensar a vida a partir do vivido, em busca da variedade do mundo objetivo, das sensações do corpo, daquilo que vive sobre e sob a pele, daquilo que nos conecta com o exterior e ao mesmo tempo toca em cheio nossos profundos sentimentos de identidade. Um mundo de objetos, animais, plantas e máquinas povoa o romance, acompanhado de perto pelo mundo das referências culturais que dão forma à emoção moderna. Uma aguda sensibilidade em relação à concretude dos eventos e das coisas do mundo material faz do romance uma afortunada oportunidade de vivenciar diferentes alternativas de sobreviver no mundo moderno e de viver nele.
Luciana Murari
Porto Alegre, maio de 2018
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