Marinho 03/09/2020
Com vocês, o nosso ilustríssimo presidente Google. Amazon, vice.
Nova York, 2030. Um arquiteto de soluções sobe ao palco de uma importante e renomada premiação de projetos inovadores para receber o Troféu Revelação daquele ano. O profissional em questão se destacou ao propor uma solução para as fake news, problema que tem prejudicado bastante o processo democrático nos últimos anos: as empresas de comunicação digital ficam restritas a uma “cota” de notícias falsas, podendo negociá-las entre si, à maneira do crédito de carbono que foi proposto nos anos 10. Dessa forma, a propagação dessas notícias ganha um limite de controle, sem prejuízo tanto da rentabilidade das empresas quanto das democracias modernas. Todos aplaudem a solução, que surge quase como se fosse “mágica” a um impasse histórico.
Sob a nossa ótica moral do presente, a situação acima parece absurda, não é mesmo? Não seria, porém, em um cenário distópico de controle do nosso destino político, bem como de outras áreas do cotidiano, por parte das empresas de tecnologias, cenário que Evgeny Morozov conceitua como “catástrofe informacional”. O livro “Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política” é uma compilação de ensaios do especialista em tecnologia e sociedade, no qual constrói uma critica profunda sobre a atual relação de influência entre a sociedade, o Estado e o setor privado. Propondo um olhar crítico sobre a forma como o extrativismo de dados é realizado de forma a aumentar o domínio da chamada Big Tech – empresas que monopolizam os veículos de comunicação digital atuais, como Google, Amazon e Microsoft -, o autor convida os leitores a refletir sobre a raíz das problemáticas causadas por esse avanço digital, como a uberização e as fake news.
O pensamento difundido pelo Vale do Silício – vamos tratá-lo aqui como entidade, embora tenhamos em mente que se trata de um grupo de analistas e empresários – é a de que a tecnologia tem o poder de superação das contradições históricas, até mesmo as mais enraizadas, como a desigualdade social e o racismo. A análise dos dados e a precisão dos algoritmos poderiam nos ajudar a propor soluções empíricas baseadas no nosso comportamento. Um aplicativo que te ajudasse a poupar dinheiro, enviando mensagens no momento certo como “não gaste esse dinheiro”, ajudaria a solucionar a questão da pobreza. Essas e outras são apontadas pelo autor como “soluções mágicas”, vendidas como mais eficientes do que os debates tradicionais da democracia nos quais “muito se discute e pouco se resolve”. Esse discurso da apoliticização dos nossos problemas, que nos guiam para um futuro talvez pós-capitalista, tornou-se tão bem difundido no senso comum – tendo a comunidade norte-americana como referência - que argumentos que questionam a lógica proposta pelo Vale do Silício são vistas como conservadoras e tecnófobas.
A grande contradição que o autor aponta é que, sob a égide um altruísmo que transpassaria o poder estatal, as empresas da Big Tech pouco a pouco vão se apropriando das mais diversas esferas do cotidiano, transformando-se em mediadoras entre o Estado e a sociedade cidadã. Essa mediação lhes confere um poder gigantesco, mensurável ao poder Estatal – e que, eventualmente, pode chegar ao ponto de controlá-lo. Acabamos perdendo de vista que, dentro de uma lógica de mercado, não existe altruísmo por parte das empresas, mas sim o reforço da privatização da sociedade. Isso é possibilitado pela enorme captura de nossos dados individuais, por meio, por exemplo, de um inocente uso do Instagram, uma mensagem de whatsapp para um ente querido, um clique descompromissado em um anúncio de uma empresa. Em troca de serviços gratuitos, aceitamos ser submetidos ao extrativismo de dados – o petróleo do século XXI, visto que as empresas que os manipulam são as mais valiosas da atualidade.
O crescimento desta lógica proposta pelo Vale do Silício pode, se não tivermos a crítica necessária e o poder político para impedir este cenário antes do tempo, levar à morte da democracia. O empirismo e o resultado prático, que oferecem as “soluções mágicas” em resposta aos padrões de comportamento explicitados pelos algoritmos, esvaziam o debate de ideias, tão fundamental para um regime democrático. E não podemos nos iludir quanto a possibilidades de autonomia em uma tecnocracia: dentro de um regime de controle por meio do uso de dados, diminui-se a possibilidade de mudanças políticas e garante-se a manutenção das estruturas sociais que favorecem as empresas no poder.
Ao longo dos ensaios, o autor nos expõe a diversas outras contradições que surgem no cenário de domínio tecnológico do nosso dia-a-dia, deixando claro que não se trata de um pós-capitalismo: o uso de ferramentas criadas por empresas monopolistas, antes de facilitarem nossa vida enquanto humanidade, servem para atender expectativas de um mercado: em troca da gratuidade das nossas redes sociais, temos anúncios pipocando na nossa tela em resposta ao nosso comportamento digital. Isso se trata nada mais do que o velho e conhecido neoliberalismo, que traz com essa lógica a mercantilização do nosso cotidiano e a diluição de nossos direitos trabalhistas em nome de um pseudo-“empreendedorismo”, dentre outros problemas.
Morozov, então, nos apela a entender a lógica empresarial que orienta a atuação da Big Tech, utilizando, por exemplo, a questão das fake news. Elas se apresentam como grande ameaça à democracia moderna não porque elementos externos se utilizam das ferramentas digitais para interferir, a exemplo da atuação da Rússia nas eleições americanas e no Brexit. A grande propagação das fake news acontece porque a veiculação da notícia – verdadeira ou não – se mostra altamente rentável para os veículos de comunicação. A raiz do problema não é a Rússia, mas sim os sistemas que possibilitam a propagação dessas notícias, sendo necessário então repensar toda a estrutura de rentabilização que os orienta. Isso ainda é difícil, para o autor, porque as democracias ocidentais ainda mostram sinais de imaturidade, submetidas a interesses elitistas que negam a origem econômica dos problemas e a corrupção sistêmica.
Como solução, que obviamente não seria, ou será, nada fácil, Morozov coloca que os progressistas não devem ser tecnófobos. Refletir sobre essas problemáticas não deve nos afastar da tecnologia, uma vez que ela se torna objeto central da disputa de poder geopolítico, mas situar o seu papel no que tange à sua relação com a cidadania. Fica como tarefa dos cientistas, pensadores, artistas, analistas, e de quem mais puder, propor uma conscientização social que possibilite redefinir a relação entre empresas e cidadãos, nos garantindo, de forma democrática, a autonomia de decidir sobre nossas vidas e nosso destinos enquanto humanidade.