Flávia Menezes 04/08/2023
???? SLAVE TO LOVE (ESCRAVO DO AMOR).
?Se a rua Beale falasse? foi publicado em 1974, e é o quinto romance de James Arthur Baldwin, um dramaturgo, romancista, ensaísta, poeta e crítico social estadunidense, nascido no Harlem, Nova York. Em 2019, foi feita uma adaptação para filme desta história, que foi dirigida e produzida por Barry Jenkins, e recebeu 3 indicações para o Oscar, tendo a atriz Regina King vencido na categoria "Melhor Atriz Coadjuvante".
Baldwin traz em seus trabalhos grandes dilemas pessoais fundamentais repletos das pressões sociais e psicológicas, que ele vai abordando através de temáticas fortes (e polêmicas!), envolvendo assuntos como a masculinidade, sexualidade, raça e classe, que vão se entrelaçando a alguns dos movimentos políticos de meados do século XX que buscavam por uma mudança social na América.
Confesso que o motivo pelo qual eu comecei a ler esse livro, foi exatamente por conta do seu título. Beale Street é o nome da famosa rua no centro de Memphis, Tennessee, que foi berço da história do blues, e onde o líder Martin Luther King (que foi amigo do autor) foi assassinado, em um quarto de hotel, em abril de 1968. E como eu tenho uma grande paixão por Memphis, não pensei duas vezes em iniciar essa leitura.
Mas apesar do título, a história tem como plano de fundo o Harlem, em Nova York, onde acompanhamos a história de duas famílias negras que se unem por conta de uma prisão injusta que afasta o jovem Alonzo ?Fonny? Hunt da mulher da sua vida, a adolescente Clementine ?Tish? Rivers.
A história é narrada em primeira pessoa, e quem nos conta é a jovem Tish. A intensidade da escrita de Baldwin é tão grande, e a ternura que ele consegue colocar em cada uma das suas palavras é tão impressionante, que desde as primeiras linhas eu me senti plenamente arrebatada para dentro desse drama, sofrendo e sentindo cada instante da vida desses personagens como se fosse na minha própria pele.
Antes de começar essa leitura, eu vi uma resenha que dizia que os personagens não foram bem desenvolvidos, mas eu confesso que após encerrar, eu não consigo entender exatamente o que a pessoa quis dizer com isso, porque eu consegui visualizar cada um dos personagens com tanta clareza, como se estivessem diante de mim. Aliás, a forma como o autor os descreve é tão realista, que é possível até sentir o cheiro da sua pele.
E esse é um ponto forte do Baldwin. Sua escrita é visceral, e tudo nela é intenso. Podemos sentir o medo, a violência, a dor tanto quanto podemos sentir a ternura, o amor e o sexo com a mesma força. As cenas são tão visuais, reais e com uma dose exata de cinestesia que não há como não se sentir parte pertencente de tudo o que está sendo narrado. Somos parte dessas famílias, e o seu drama passa a ser o nosso drama também.
Aliás, o quesito família aqui é de uma beleza sem igual. A forma como o pai de Tish se coloca na vida da filha, a aconselhando e amparando, sempre tão carinhoso e compreensivo, é de emocionar. Sem falar que aqui, o papel das mulheres é tão ativo, que a mãe e a irmã de Tish nos mostram o quanto o amor nas famílias pode ser o único (e o mais importante!) sustento nos momentos em que a vida nos prova da forma mais dura e dolorosa possível.
Uma das coisas que mais me encantaram nessa história é a forma como o autor traz a figura do homem viril (Fonny), em contraponto com a mulher frágil (Tish), mas que não se intimida ao ser chamada para vir em defesa do homem que ama, sem precisar se colocar acima dele.
Baldwin colocou tanta força nessa relação dos dois. Apesar de jovens, um homem e uma mulher nascem no momento exato em que se apaixonam, e se entregam um ao outro de forma a se tornarem um só. Aliás, a cena em que os dois fazem amor pela primeira vez é de uma beleza que não tenho palavras para traduzir, e a qual deixou todo o romantismo de lado para descrever uma entrega real, de uma parceria e um cuidado (da parte de Fonny) que me impactou a ponto de ter que deixar o livro um pouco de lado para poder ter tempo de processar essa cena.
Baldwin tem uma escrita que nos toca profundamente, e traz reflexões existenciais que me deixaram sem fôlego. E se me permitem, gostaria de trazer aquela que mais me impactou:
?Mas os homens não têm segredos, exceto com relação às mulheres, e nunca crescem da maneira que as mulheres crescem. É muito mais difícil, e toma muito mais tempo, para um homem crescer, e ele jamais seria capaz de fazê-lo sem as mulheres. Esse é um mistério que pode apavorar e imobilizar uma mulher, e é sempre a chave para a sua agonia mais profunda. Ela precisa observar e guiar, mas ele tem que liderar, e o homem sempre parecerá dar mais atenção real a seus companheiros do que a ela. Porém, esse relacionamento ostensivo e ruidoso entre homens os capacita a lidar com o silêncio e aquele segredo que contêm a verdade de um homem e o liberam?.
Não é bonito isso? Aliás, o masculino e o feminino aqui são trazidos em sua essência mais profunda. E para pessoas como eu, tão old school (à moda antiga), foi um conforto que mais parecia um carinho na alma. Eu gosto assim, e a cada cena eu só queria mais e mais e muito mais, porque quem dera na vida tivéssemos mais homens assim.
Será que posso deixar a minha ?romântica irrecuperável? aflorar aqui, e partilhar uma cena que é muito a minha cara? Como eu não resisto, vou ter que colocar.
??Ah Tish, você me ama?
? Eu te amo. Eu te amo. Você tem que saber que eu te amo, assim como sabe que esse cabelo crespo está crescendo na sua cabeça.
? Estou feio?
? Bom, eu queria te agarrar. Pra mim você está sempre bonito.
? Também queria te agarrar?.
Ai, Baldwin... Você acabou mesmo com o meu coração!?
E nessa história, o blues vai surgindo como uma referência musical que é pai de todos os outros estilos musicais afro-americanos, se expressando de forma profunda, trazendo em si a compaixão e a eloquência dolorosa, que se traduzem nessas vozes repletas de honestidade e paixão, a ponto de facilmente nos emocionar. A mesma força e beleza que vemos em cada uma das palavras dessa leitura.
As únicas partes negativas dessa história é que ela acaba, além de uma cena em que a intolerância religiosa se converteu em graves blasfêmias que foram até dolorosas de ler. Mas de resto, ela é simplesmente perfeita, e tudo o que eu tentar dizer aqui não será nem 1% de toda a sua magnitude.
Baldwin é um artista muito talentoso, e sua narrativa é pincelada de emoções que nos fazem encerrar essa história sentindo aquele vazio de quem queria muito mais desse amor que não tem nada a ver com romantismo, mas sim com o sentimento paradoxal de ser livre para sentir e viver tudo o que ele oferece, ao mesmo tempo que significa pertencer (unicamente) a alguém.
E como alguém um dia cantou: "Eu quero mais, e tanto faz, se tudo o que eu mais quero é ter você pra mim".??