Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz

Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz Heloisa Maranhão




Resenhas - Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz


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Carla.Parreira 08/10/2023

Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz
...a incrível trajetória de uma princesa negra entre a prostituição e a santidade...
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Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz é certamente a mulher negra africana do século XVIII, tanto em África como na diáspora afro-americana e no Brasil, sobre quem se dispõe mais detalhes documentais sobre sua vida, sonhos, escritos e paixão. É a primeira afro-brasileira a ter escrito um livro, do qual restaram algumas páginas manuscritas. Dos seus 46 anos de fantástica existência, viveu 20 anos no Rio de Janeiro, primeiro de 1725 a 1733, quando foi vendida para as Minas Gerais, lá permanecendo por 18 anos seguidos, retornando à cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro em 1751 e aqui vivendo até 1763, quando foi enviada presa para os Cárceres do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa. Foi considerada na época como "a maior santa do céu", a quem brancos, mulatos e negros, inclusive toda a família de seu ex-senhor e respeitáveis sacerdotes, adoravam de joelhos, beijando-lhe os pés, venerando suas relíquias, intitulando-a "a flor do Rio de Janeiro". Fundou o Recolhimento de Nossa Senhora do Parto, ocupado predominantemente por negras e mestiças, cuja capela, reformada, permanece até hoje no centro desta cidade na rua da Assembléia. Melhor que ninguém, Rosa tipifica a riqueza e força do sincretismo religioso afro-católico-brasileiro. Rosa era uma negrinha nascida na Costa de Mina, de nação Courana, também conhecida como Coura, que desembarcou de um navio negreiro no Rio de Janeiro, em 1725: tinha 6 anos de idade. Quando aqui chegou, o comércio de escravos fazia-se nas imediações da Rua Direita, em pleno centro comercial do Rio de Janeiro, e somente no governo do Marquês de Lavradio, por volta de 1760, que se destinou ao Valongo como mercado negreiro. Foi comprada por um tal senhor José de Souza Azevedo, que a mandou batizar na Igreja da Candelária, que no "tempo do Onça" não passava de uma pequenina igreja, sede da Freguesia da Várzea, humílima em comparação à grandiosidade do templo neo-clássico que hoje conhecemos. Era certamente a igreja carioca onde mais escravos eram batizados: entre 1725-1726, dos 444 batismos aí realizados, 62% eram escravos, permitindo-nos levantar a hipótese de que a familiaridade com a patrona desta igreja talvez explique a gênese da associação entre Nossa Senhora das Candeias com o culto à Rainha do Mar, Iemanjá. Após oito anos no Rio de Janeiro, novamente Rosa sofreu outra separação de seus conhecidos, a ruptura de uma rotina de sua vida de adolescente, a angústia e temor face ao desconhecido. Por mais fome que tenha passado desde que atingira a idade da razão, por mais pancadas, beliscões, palmatórias ou mesmo chicotadas que tenha recebido na casa de seus senhor, certamente esta menina-moça africana criara laços afetivos e de amizade com outros escravos, talvez com gente de sua mesma nação, de modo que provavelmente deve ter derramado muitas lágrimas ao se despedir do pequeno grupo de seus entes queridos. A viagem para as Minas - por volta de 500 quilômetros percorridos a pé, foi a segunda grande caminhada forçada na vida desta garota: a primeira, há uns nove anos passados, de sua aldeia tribal até o Porto de Judá, agora esta outra, atravessando densas e úmidas florestas, ferindo seus pés descalços subindo a serra da Mantiqueira em direção às Minas Gerais, uns 12 dias de viagem.
Na Capitania das Minas, Rosa foi comprada pela mãe de um de nossos mais destacados literatos do período colonial, Frei José de Santa Rita Durão, indo morar na freguesia do Inficcionado, a duas léguas de Mariana. Como tantas escravas de norte a sul da Colônia, a negra courana foi viver de vender seu corpo e favores sexuais aos concupiscentes mineiros, que com ouro em pó compravam mercadorias e prazer das poucas mulheres que percorriam as faisqueiras. Era a única escrava negra num plantel de 77 escravos machos! Segundo mais tarde confessou, perante o Comissário do Santo Ofício do Rio de Janeiro, passou 15 anos "a se desonestar vivendo como meretriz." Este comércio venéreo deu à escrava africana um traquejo social e um verniz civilizatório que muito lhe auxiliou em seu futuro grandioso. Não é difícil imaginar todos os constrangimentos, violências e doenças que esta jovem africana deve ter sofrido, na condição de prostituta escrava-negra, numa região abarrotada de aventureiros e carente de filhas de Eva.
Ao completar 30 anos foi atacada de estranha enfermidade: ficava com o rosto inchado, sentia tumor no estômago, caindo ao chão desacordada. Rosa decide então mudar de vida: por volta de 1748, vende seus parcos bens - jóias e roupas amealhados com a venda de seu corpo, distribui tudo aos pobres. Adota vida beata, freqüentando os ofícios divinos e liturgias, que abundantes eram celebrados nas barrocas igreja mineiras, muitas delas acabadas de construir nessa mesma década. Foi numa dessas andanças que encontrou na Capela de São Bento, no mesmo arraial do Inficcionado, o Padre Francisco Gonçalves Lopes realizando fantásticos exorcismos em alguns energúmenos. Este sacerdote português era então vigário da freguesia de São Caetano, no mesmo distrito, e tão eficaz e useiro era em tirar o demônio do corpo de brancos e pretos, que tinha por apelido Xota-Diabos. Impressionada com a cerimônia do exorcismo, Rosa revelou ela própria também estar possuída por sete demônios: disse ter sentido como que um caldeirão de água quente que era despejado sobre seu corpo, caindo incontinenti desacordada ao chão, partindo a cabeça na pedra debaixo do altar de São Benedito. Não deixa de ser emblemática a coincidência de seu primeiro transe religioso ter acontecido exatamente ao pé de um santo negro, exescravo franciscano da Sicília. Um segundo exorcismo realizado nessa mesma freguesia confirma ao sacerdote que de fato a escrava do casal Durão era uma possessa especial, pois quando vexada, fazia sermões edificantes, sempre preocupada que todos mantivessem perfeita compostura nos templos, retirando à força para a rua a quantos conversassem ou desrespeitassem o Santíssimo Sacramento. Quando possuída por ?Satanás?, falava grosso, caía desacordada e dizia ter visões celestiais, vendo por diversas vezes Nossa Senhora da Conceição, ouvindo diversos coros de anjos que lhe ensinaram algumas orações, recebendo até a revelação de uma fonte de água milagrosa ao pé de uma montanha, onde devia ser construída uma igreja em honra de Senhora Sant?Ana. O culto aos avós de Cristo substitui no imaginário místico de Rosa, a perda e desconhecimento de seus próprios ancestrais, culto tão forte na maior parte das tribos da Costa da África. Após os exorcismos, Rosa dizia ser arrebatada por um misterioso vento: "quando saía de casa para ir à igreja, logo na rua sentia um vento tão forte que lhe impedia os passos e com grande violência a fazia retroceder para trás e se bater com o corpo em uma cruz, sendo em dias que não havia vento e só por virtude dos preceitos que punha o exorcista é que podia resistir ao dito vento e entrar na igreja." A presença deste misterioso vento realça mais uma vez a força do sincretismo afro-judaico-cristão em seu imaginário, pois na tradição do Velho Testamento, Javé é referido como vento, sopro, ar, hálito; no Novo Testamento o Espírito Santo aparece em forma de vento ("pneuma"), e mais recentemente a aparição de Nossa Senhora de Lourdes à Santa Bernadete ocorre em seguida a "um pé de vento"; na tradição dos Orixás, nossa poderosa Iansã é identificada com ventos e tempestades, fazendo parte do décor de inúmeros episódios míticos afro-brasileiros a presença do vento.
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