MatheusPetris 17/10/2021
Na penúltima página da edição deste livro que emprestei de uma biblioteca, fora escrito a lápis a seguinte frase: “Lixo!!!”. Convém meditar sobre, afinal, foi (e o é) um livro deveras polêmico. No último parágrafo do romance, pai e filha se beijam apaixonadamente, confirmando que, na noite anterior, viveram momentos incestuosos e de sodomia. É óbvio que isso choca. Mas não é nem de perto, um dos momentos mais bárbaros do livro. De estupro, a canibalismo, a sodomia, ao esquartejamento de crianças… e por aí vai. Todavia, fica claro que aqui só estou escrevendo sobre seus temas, sobre seu enredo, sobre sua história, enfim, como preferirem chamar. Acredito – e aqui vai a minha suposição que será o ponto de partida deste ensaio – que a afirmação escrita no livro e que abre este texto, o defina e o julgue, justamente por esse viés conteudista. E para além disso, com um julgamento moral. O que me fez lembrar de Terry Eagleton, quando questiona críticos e leitores, que julgam personagens como se eles fossem reais. Vale citá-lo: “O texto é uma configuração, um arranjo de significados, e arranjos de significados não têm existência própria, como uma cobra ou um sofá.”
Não pretendo retomar, segundo como o próprio Grillet define em seus ensaios críticos (na década de 50), o velho barco furado da dicotomia entre forma e conteúdo, entretanto, vale refletir breve e sucintamente da problemática que ainda reside em nossos tempos, pois, a forma é quase sempre relegada, esquecida; e não é difícil de constatar isso, observando inúmeras análises/resenhas escritas sobre esse livro internet à fora.
O crítico literário Alcir Pécora, diz o seguinte sobre o Romance: “‘Um Romance Sentimental’ pretende sobretudo que se reconheça que aquilo que se dá como estilo, a moral não tem razão nem direito de condenar, como o teria, sem dúvida, se o mesmo se desse como fato.” Partiremos disso. Afinal, não estou aqui para discutir os limites da arte, pois, ao meu ver, ela é inexoravelmente livre. Como disse (mais ou menos) o próprio Grillet: a principal condição de existência da arte é a liberdade; A obra de arte deve ser necessária, mas necessária para nada!
Qual o ponto – segundo o próprio autor – de partida da escritura de seu romance? A própria noção de verossimilhança que, aqui, é implodida. Se existe qualquer tipo de verossimilhança – e realmente existe – ela é puramente interna, se colocando como um problema exclusivamente de linguagem, da construção de um mundo que não é o nosso. E é nisso que reside o experimento que “corre o risco de chocar certas sensibilidades”. Dado que, é uma narrativa tão harmônica e bem situada, que faz parecer um testemunho de uma época, ou, como diria o Alcir Pécora: “Quer dizer, se a história é brutal, imoral, criminosa, a elocução é decorativa, clássica na fluência, preciosa nos detalhes, arcaizante, distante.
Gigi, a criança prestes a completar seus quinze anos, leva o mesmo nome que uma personagem do seu romance anterior, A Retomada, de 2001. Naquele romance, assim como neste, existe uma erotização quase que fetichista (dos personagens que a observam) da menina. E essas descrições eróticas pormenorizadas, estabelecem um estilo e uma preocupação que, em certa medida, está atrelada ao tempo narrativo. Em diversas cenas, lemos a descrição de instantes temporais precisos, como se olhássemos a um quadro estático; quadro no qual, seria impossível não se horrorizar. No romance supracitado, mas principalmente neste, existe a diabolização da luxúria feminina, não como uma mensagem, mas como um princípio que rege o olhar daquelas personagens.
O narrador com clara onisciência, tem uma proximidade muito forte com as personagens e também com o narratário. Os relatos, muitas vezes, soam como conversas por escrito entre alguém que presenciou as atrocidades e as relata a um amigo querido. E o tempo entre o acontecido e o relatado possui quase uma instantaneidade. Por isso, os capítulos divididos por números (apesar de alguns serem uma continuidade direta e, talvez, apenas uma divisão editorial), soam como cartas, como uma história que está acontecendo, vai se delineando, seja por rememorações do passado também atroz, como pelo presente, sempre mais cruel e torturante.
Se sua linguagem remete ao século XIX (talvez até antes), o enredo parece se entrecruzar entre o passado medieval e a modernidade capitalista. Nessa sociedade, o mercado sexual é, além de permitido por lei, utilizado como métodos punitivos pelo próprio Estado. Em tal realidade, a tortura é banal e socialmente aceita. A tal implosão é mediada por isso, pela banalização de uma realidade bárbara. Realidade esta, de tamanha incivilização, com ares de uma civilidade ornamentada, honrosa e que esbanja seus objetos de tortura (sejam elas quais forem). E para além disso: submete a própria família aos seus caprichos de uma tradição burguesa. Não há espaço para alegoria, é o relato de um outro mundo (tão real quanto o nosso). Entretanto, há a possibilidade do espanto dessas personagens para além de suas cotidianidades, pois, ao encontrarem velhos livros, se deparam com relatos ainda mais cruéis e assustadores do que com suas próprias realidades, ou seja, nessa espécie de mise en abyme, constata-se que o mau – se é que podemos adjetivar isso tão singelamente – foi ainda mais tentacular e sufocante do que eram em seus dias. Se as crianças que encontram tais atrocidades se recusam acreditar em tais relatos, como nós, diante dessa obra, nos saímos? Pergunta difícil e talvez inútil. O que é fato, é a dimensão inventiva e provocativa da arte de Alain Robbe-Grillet.